[RESENHA] Servidão Humana | um ode a inquietação, abismos e asas...

Neste misto de autobiografia e ficção, o final da jornada só é superado pelo caminho feito até ali...


Nota: ★★

Se você me perguntar como cheguei a este livro a resposta é a seguinte: Se7evn – os sete pecados capitais. Caso você não tenha visto este filme, veja e saberá do que estou falando. Nunca havia lido nada do autor e fiquei maravilhado com sua escrita que consegue criar uma imersão profunda pautada na vida de sofrimento e superação do personagem central que tem um "Q" de autobiografico...

No livro somos apresentados a Phillip Carey que nasce com uma deformidade no pé que sempre será um ponto fraco físico e psicológico. Não bastando isso, a roda indiferente do destino fez com que o personagem perdesse os pais e fosse criado pelos tios que atados a compromissos religiosos com a paróquia, não tem tempo (talvez vontade?) de dedicar o amor que Phillip necessita - principalmente o tio. Doravante, acompanhamos a vida de Phillip, desde sua educação primária com forte viés religioso, passando pelo descobrimento dos prazeres sexuais, as mudanças na forma de ver e se relacionar com o mundo e, talvez o que, num primeiro momento chama mais atenção, sua relação de amor e ódio com Mildred...

Servidão Humana foi escrito no ano de 1915. Como muitos autores da época, William Somerset Mugham, em seus primeiros livros, faz uma mescla de sua vida e ficção: se no livro o Phillip é claudicante, William é gago; ambos estudaram em escolas religiosas e, posteriormente passam a ver a religião como algo claustrofóbico que serve mais para escravizar do que salvar o individuo...

Passeando por muitas searas do conhecimento – arte, filosofia, história, religião... – o autor consegue discorrer com maestria por todas elas de forma profunda, reflexiva e de agradável leitura – ficando só um pouco cansativo os momentos em que ele se alonga em demasia por vários parágrafos discorrendo sobre alguns pintores...

Independente de partilhar ou não com a visão do autor, é inegável que suas ideias tem um embasamento forte o que no mínimo gera um ponto de interrogação na cabeça do leitor. Principalmente no que concerne ao campo da religião: neste tema específico, vemos como Phillip vai aos poucos deixando que mais e mais incertezas tomem forma em sua mente fazendo com que as regras e dogmas cristãos fiquem de lado ante suas próprias sensações e vivências...  

E apesar de flutuar por muitos temas abstratos e intelectuais, o autor não deixa de lado as relações humanas. Assim, vemos a avareza e desejo de nortear a vida de seus pares na figura de seu tio, ou a da boêmia que leva ao ocaso na figura de um conhecido escritor que Phillip conhecera em Paris. Tudo isto feito de forma não apenas a te jogar informações mas para que você sente-se de frente para o espelho e pense: e eu, como vejo tudo isso? Mas, falar de servidão Humana e não citar a relação de Phillip e Mildred é impossível...

Desde as primeiras aparições de Mildred, o autor já deixa claro que ela terá um papel importante no sofrimento e, posteriormente, amadurecimento de Phillip. A forma como ele decide abordar esta relação imprime uma inquietação e até um dose de raiva: as humilhações que Mildred impõem a Phillip remetem aqueles relacionamentos em que uma das partes crê que de uma hora para outra o outro irá se transformar ante o amor lhe dispensado e toda sorte de sofrimento irá acabar. E neste caminho, Phillip, além de sofrer e amargar o dissabor da desilusão, acaba deixando de abraçar outras oportunidades de ser feliz...

Mas esta relação é uma espécie de microcosmo representando toda a vida de Phillip. Sua desilusão com a religião, a descida até a miserabilidade culminando com o limiar da fome até a redenção na figura de um conhecido, traçam um paralelo com a relação nada sadia dele e Mildred. É como se os picos de felicidade entremeados com longos períodos de sofrimento fossem uma extensão direta de sua devoção quase mística a Mildred...

Ler Servidão Humana é mergulhar num mundo onde as certezas sobre o que se é e como se vê as coisas são apenas borrões. Não há nada definido e no percurso de se encontrar no mundo você é jogado no mais puro abismo. Porém, ao se ver envolto nas asas das incertezas e das angústias, para aqueles que não se deixam sucumbir, é possível vencer os muros das próprias barreiras psicológicas e alçar vôos até então inimagináveis...

Boa leitura

Servidão Humana ( Of Human Bondage, 1915)
Páginas: 605
Autor:  William Somerset Mugham
Editora: Globo


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