Alguns livros conseguem cativar, não apenas por uma boa história, mas também pela forma como a história é contada. O livro de contos de Ted Chiang é daqueles achados ímpares. Alçado ao estrelato por conta do filme “A Chegada”, de Denis Villeneuve, que tem como base um dos contos do autor, o livro é daqueles que exigem algum empenho do leitor.
São
8 contos nesta coletânea que desfilam por linguística, matemática, física,
neurociência, humanismo, enfim, quase nenhuma área do conhecimento é esquecida
pelo autor que sabe usá-las de forma magnifica. Claro, apesar de todas essas
áreas do conhecimento exploradas, a ficção cientifica se sobressai. Mesmo
aqueles que flertam com fantasia, tem em si um olhar cientifico.
O
conto de abertura, A Torre da Babilônia,
conta a história dos mineradores que foram contratados para erigir a Torre de
Babel. Apesar do fundo religioso, tudo é narrado com um rigor cientifico e
cheio de lirismo. O final do conto é realmente surpreendente.
Já
na sequência, temos o conto Entenda.
Apesar de ser a história mais difícil de entender, é o conto mais comum do
autor. Nele, o autor debate a questão da superinteligência em seres humanos e
uso que possivelmente faríamos dela. Como é narrado em primeira pessoa – e por
um ser superinteligente, é mais complexo que a maioria.
Depois,
passamos por dois contos que apesar de distintos, discorrem sobre como as
pessoas encaram a vida em situações inevitáveis. São histórias mais humanistas.
O primeiro dos dois, Divisão por zero,
conta sobre uma pesquisadora que descobre uma equação que comprovaria que toda
a matemática está errada. Paralelo a isso, vemos como a vida dela vai perdendo
o sentido. Há uma beleza na forma que a matemática é tratada servindo de
homenagem do autor a esta área do conhecimento. O outro conto é História da Sua Vida (resenha do conto aqui)
. Baseado na Hipótese de Sapir-Whorf – de que a
linguagem pode determinar como pensamos e vemos o mundo, o chamado “relativismo linguístico”
– o conto narra como alienígenas surgem na Terra e uma linguista é convocada
para decifrar sua linguagem e descobrir suas reais intenções. Escrito numa
narrativa cíclica, o conto é mais sobre o que seria livre arbítrio do que
ficção cientifica (e diga de passagem, o filme consegue abordar a ficção científica
melhor que o conto). É um dos mais emocionantes contos da coletânea.
Setenta e duas letras,
um conto que flerta com fantasia, é sobre como pessoas podem animar golens para que estes executem tarefas. É
uma metáfora sobre máquinas suplantando homens. Tudo isso acontece numa
Inglaterra vitoriana cheia de conspirações religiosas.
Outro
conto a discorrer sobre superinteligência, A
Evolução da Ciência Humana, é um periódico cientifico narrado num futuro
distópico, onde a superinteligência saiu do controle.
Num
dos contos mais surpreendentes, O
Inferno é a Ausência de Deus, estamos num mundo onde não se discute se Deus
existe ou não. Conceitos como inferno, céu, anjos, milagres são todos fatos. Num
enredo que explora o debate cientifico sobre o poder da fé na salvação pessoal,
faz uma abordagem cheia de indagações filosóficas. Qual o poder da fé? Deus é
um ser justo? Se ele é justo, como pode ser um Deus de amor? Porque nem todos
são agraciados com milagres? Tendo como base a história bíblica de Jó,
acompanhamos três personagens que tentam entender esses conceitos e vemos como
a caminhada de cada um deles, poder ser um reflexo de todos que já se
questionaram sobre isso.
Gostando do Que Vê: um documentário,
é o conto que mais debate pode gerar. O conto é sobre um procedimento cirúrgico que consegue extirpar das pessoas a
capacidade de enxergar beleza em rostos, ou fazer com que pessoas que não conseguem ver beleza, possam ver.. Aqui, a beleza é quase uma droga viciante. O embate
começa quando uma universidade quer tona a Cali – como se chama o procedimento –
obrigatória, já que ela permite que todos tratem as pessoas iguais, independentes
da beleza. Entrevistas são concedidas
por estudantes sobre o que pesam sobre a Cali, e vemos como publicidade,
noticiários, mídias e “personalidades” influenciam nossas decisões. Um destaque
para uma jovem que desde cedo conviveu com esta “deficiência” e agora fez o procedimento
para “enxergar” beleza e como isso afetou sua conduta. Em uma época em que
vivemos conectados e somos bombardeados por propagandas e pessoas nos dizendo o
que usar o fazer, o conto levanta questões muito pertinentes sobre nossas ações
e o quanto somos manipuláveis.
Ted
Chiang é um autor que pouco escreveu, ainda assim já foi agraciado com os
maiores prêmios do mundo da fantasia e ficção – Nébula e Hugo. Talvez por seus
contos serem muito reflexivos e cheio de temas complexos, isso explique sua
baixa produção. Mas, tendo em vista a qualidade dos mesmos, compensa
e muito.
Boa
leitura.
Nota:★★★★★
Livro: História da Sua Vida e outros contos
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