[CRÍTICA] De Olhos Bem Fechados I a vida atrás de máscaras...

 


Nota: ★★★★

Stanley Kubrick foi um diretor que eventualmente se envolveu em polêmicas. Diretor cultuadíssimo, para alguns o melhor a pisar este pálido ponto azul, filmou obras que são verdadeiros clássicos da sétima arte como Laranja Mecânica e 2001, Uma Odisséia No Espaço. Kubrick também foi um diretor que causou polêmicas com seus longas.

Só pra citar algumas: quando filmou “Lolita”, o diretor provocou a ira do Vaticano com suas cenas lascívias de uma jovem; já “Laranja Mecânica”, causou  alvoroço na Inglaterra pois muitos correlacionavam o filme com o aumento da violência no país; e esta que é, pra mim, a mais legal que se refere a “2001, Uma Odisséia no Espaço”. Para muitos conspiradores por aí, Kubrick usou o aparato técnico que usou para filmar o longa para ajudar o governo estadunidense a criar a farsa da chegada do homem à lua (!!!).

Por este breve histórico, nota-se que a mística em volta do autor era grande. E em seu derradeiro filme, o diretor acabou fornecendo mais munição àqueles que creem piamente que ele era alguém envolto em abstrusidades e conspirações governamentais. Sim, vamos falar sobre o fantástico De Olhos Bem Fechados.

De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut – 1999), adaptado do conto “Traumnovelle”, de Arthur Schnitzler, a despeito de ser meio menosprezado, para mim, é um dos melhores filmes do diretor e faz tempo que penso em escrever sobre ele aqui no “broguinho”. Além de ser um filme fascinante, como foi dito no parágrafo acima, ele joga mais lenha nas polêmicas envolvendo o autor, principalmente devido ao que aconteceu com o diretor logo após o fim das edições do longa e ainda lança questões sobre a nossa face ante a sociedade.

Estrelado por Nicole Kidman (Os Outros), e Tom Cruise (Missão Impossível), que na época eram os queridinhos de Hollywood, o filme já causou polêmica antes mesmo de estrear. Anúncios promocionais sugeriam que veríamos Kidman em nu frontal. Apesar de algumas cenas mostrando a atriz sem o soutien (que não sanou a curiosidade de muitos) o autor mostrou que tinha coisa muito mais interessante para mostrar.

Cruise interpreta Bill Harford, um médico bem sucedido, casado com a bela Alice, Nicole, que vivem uma vida feliz junto com sua filha num estereótipo da classe média muito bem representada por aqueles comerciais de margarina. Na noite de Natal, o casal vai até a casa de Victor Ziegler, um paciente milionário de Bill, que está dando uma festa para celebrar a data. Tudo transcorria naquele clima de comercial de Doriana até que os instintos do casal afloram: ela, flertando com um húngaro de nome Sandor Szavost enquanto Bill se derrete por duas jovens modelos que querem “se aproveitar” do doutor. 

Aqui, já vemos como o diretor quis quebrar um pouco aquela ideia de casal perfeito. Isso fica mais implícito quando levamos em consideração a escolha dos atores. Kidman e Cruise eram vistos como modelos a serem seguidos por todo casal de enamorados que desejam sair da mediocridade de relacionamentos pequenos: ricos, bonitos, famosos, apaixonados e fiéis. O retrato de seus personagens contrasta com suas vidas mostrando um pouco do pessimismo que o diretor via em instituições, incluindo o casamento.

Acompanhamos este flerte de ambos até que Victor chama Bill às pressas ao banheiro: uma jovem que estava transando com Victor demasiou devido o consumo excessivo de drogas. Aí, mais uma vez há uma desconstrução do status quo, pois toda a opulência e possível moralidade da alta sociedade é varrida para debaixo da poeira ante instintos carnais mais fortes.

Após voltarem para casa, Bill e Alice fumam um baseado e engatam um conversa que seria o ponto de virada total da narrativa. Em uma das melhores interpretações de Kidman fazendo uma Alice completamente chapada de maconha, ela revela ao marido que anos atrás ela quase abandonou ele e a filha por um oficial da marinha que vira num hotel onde estavam hospedados. Aquilo desconcerta Bill que sempre vira a esposa – e as mulheres em geral – como uma entidade quase desprovidas de desejos carnais servindo sempre um proposito mais elevado e nobre: fidelidade matrimonial. Ele sai de casa para esfriar a cabeça. Quase sexo com uma prostituta, encontra com um amigo músico que lhe fornece o endereço e uma senha de uma festa secreta e a fantasia. Aí temos a entrada para a toca do coelho.

Se o longa seguisse esta premissa – Bill vingando-se de Alice por uma POSSÍVEL traição – já seria material suficiente para debates acerca do verdadeiro significado da traição e o quanto achamos que conhecemos das pessoas que convivemos. Desejar sexualmente outro alguém é o mesmo que traição carnal? Se não, porque isso nos incomoda quando parte do conjugue? Porém, Kubrick dá uma mudança no destino do longa. Já vimos isso acontecer no brilhante Nascido Para Matar, e apesar da mudança do foco narrativo, a qualidade continua lá em cima e o subtexto do longa continuam os mesmos.

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Bill vai até o local indicado e ali vemos, talvez, uma das cenas que mais geraram debates no longa: O ritual. Aparentemente emulando o ritual de Hieros Gamos, envolto numa orgia sexual, Kubrick apresenta uma faceta da sociedade que pode ser interpretada apenas figura e metafóricamente  ou como algo real numa performance ocultista. Para os amantes de teorias conspiratórias (Rockefeller, Iluminatti, Reptilianos e afins), foi um prato cheio. Do ponto da destreza cinematográfica, foi perfeito. Alias, todo longa é.

Mostrando um controle total dos movimentos de câmera e enquadramento para realçar ou amenizar um sentimento, Kubrick faz uso de um mundo com cores fortes predominando o amarelo das luzes natalinas na primeira parte do filme que é deixado de lado para uma cinematografia mais escura na segunda metade (a do ritual). Todos os cenários são bem construídos com alguns detalhes que só são percebidos por um olho bem atento – ou em uma segunda seção. A trilha sonora é quase uma entidade intrínseca do longa. Desde o instrumental de Dimitri Shostakovitch da Valsa 2 mostrando um inicio alegre até a   música do ritual, Masked Ball, de Jocelyn Pook engenhosamente tocada ao reverso. 

Toda essa bem estruturada técnica dá a impressão de vermos um sonho bem nítido com uma pitada de surreal. Isso fica mais forte na cena ritualística: enquanto se esbaldam em orgias sexuais, todos estão usando máscaras numa referência que remete ao conceito de Persona do psicanalista Karl Gustav Jung. Segundo Jung, persona é a face social que apresentamos ao mundo. Longe de ser o nosso eu real mas uma personificação daquilo que queremos que os outros vejam de nós. No contexto do filme as máscaras servem para que os indivíduos “donos da sociedade”, os ricos e poderosos, se dispam de suas convenções e sejam quem realmente querem ser. Porém, se tal realidade viesse à tona, não veríamos eles com tanta reverência assim. Aliás, nós também usamos nossas máscaras no dia a dia e a pergunta que fica é: será que isso é de todo ruim?

Desde o bom dia à alguém que não gostamos até a palavra de otimismo a outro que está prestes a sucumbir, estamos usando nossas máscaras. Nem todas para manter o status quo. Muitas servem unicamente para manter numa penumbra nossa personalidade odiosa ou nossas fraquezas. Ainda temos as máscaras que usamos para ser quem realmente queremos. Seria possível a vivência harmoniosa num mundo onde todos  fizessem e fossem o que realmente desejam? Seria a Lei de Thelema o melhor caminho a seguir? E na outra ponta, até que ponto nossas máscaras são máscaras e não a nossa verdadeira face?

Recebendo críticas variadas, muitos acharam o filme muito aquém do talento do autor. Entretanto, este nada ficou sabendo do que acharão de sua obra: este foi o último filme de Kubrick que morreu alguns dias após apresentar a versão final aos donos do estúdio. Isso apimentou o mistério envolvendo o filme: para muitos, Kubrick tentou, através do filme, mostrar a realidade por trás da elite mundial e logo foi silenciado. Notícias circularam na internet sobre festas celebradas pelos Rockefeler onde máscaras semelhantes a do filme eram usadas. Inclusive, o filme foi rodado em uma mansão pertencente a tão misteriosa família. Todos ingredientes que aglutinam para dar forma ao misticismo envolvendo o filme. 

Toda esta mística envolvendo Kubrick e o filme são um retrato das polêmicas envolvendo o autor que mesmo enchendo blogs e sites de material conspiratórios gerando debates sem fim, não conseguem suplantar a verdadeira realidade por trás de todas as máscaras: Kubrick foi um verdadeiro mestre entre os seus.

De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, EUA/Reino Unido, 1999)
Roteiro: Stanley Kubrick, baseado no conto Arthur Schnitzler
Direção: Stanley Kubrick
Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sidney Pollack, Leelee Sobieski, Alan Cumming, Todd Field, Vinessa Shaw, Christiane Kubrick
Duração: 159 min.


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