A TRISTE FELICIDADE!!!


Hoje, estávamos realizando uma atividade diferente no serviço (ao menos pra mim) que consistia em coletar uma amostra do sangue de cachorros pra analisar se os mesmos estavam com Leishmaniose visceral. Encontramos cães de todos os tipos: desde os de raça aos vira-latas (os melhores, na minha humilde opinião); dos grandes aos médios; dos agressivos aos plácidos; enfim, uma pluralidade enorme. O que me chamou atenção foi um cão resultado de São Bernardo e vira lata. 

O cão já velho, em torno dos quinze anos. Estava meio capenga. Segundo seu dono, desde muito cedo Beethoven – esse é seu nome –  já apresentava problemas de pressão. Os olhos do cachorro tinham aquele ar triste que a maioria dos cachorros tem quando estão com uma certa idade. 

Dava uns passos meio trôpegos e logo encontrava um local aconchegante e se deitava. Mas, outrossim, aparentava estar feliz. Mesmo velho, a atmosfera de felicidade pairava sobre cachorro. Fiz um rápido carinho nele e, em resposta, recebi uma retribuição em forma de lambida.

Depois que fizemos os procedimentos (nele e no Wolfgang, o outro cachorro) fomos embora perscrutados pelos olhos cansados, tristes e felizes de Beethoven. 

Porque fiz este breve relato? Sinceramente não sei. Fiquei com isso na cabeça martelando. Simplesmente é algo que não foi embora. Diversas vezes algo nesse sentido acontece. Algum acontecimento, comum, banal, acontece e, sem motivo claro, fica zunindo no meu ouvido como um mosquito. E tal como o mosquito que o zzzzzz, não te deixa dormir, minha mente não para de pensar nesses assuntos quando ficam a martelar na mente. 

Quando isso ocorre, em geral, fico tentando imaginar alguma história relacionada, ou algo que remeta a mesma cena. Em um número razoável de situações tais práticas fazem efeito e, eureka, problema solucionado. Já em outras tantas, não é tão simples assim. A imagem de determinada cena fica ali como uma tatuagem. 

Em algumas outras, tento achar algum sentido pra, dentre as várias coisas, as várias pessoas, as várias situações, as várias pessoas que eu tenho contato durante o dia, ficar pensando em uma que ficou impregnada na minha mente.

Depois de pensar exaustivamente sobre Beethoven , cheguei há um monte de possíveis conclusões sem que nenhuma seja  “A conclusão”. Penso que talvez a imagem de um Beethoven triste, mas feliz, me remeta há algumas situações em que tive que optar por algo que não era o que eu queria, mas era o possível ou necessário para o momento. 

Talvez seja daquelas situações em que nos vemos diante de uma situação onde não há nada que possamos fazer pra melhorar nossa situação e ainda assim, conseguimos achar motivos adjacentes pra ficarmos felizes; talvez seja porque penso que quando se passa certo tempo e se vive feliz fazendo algo ou com alguém, mesmo que aquilo esteja próximo de seu inevitável fim, as recordações de que dias bons foram vividos ou compartilhados só pode haver razões pra se estar feliz. Talvez seja por Beethoven olha em volta e ainda que combalido, sentir que continua sendo amado talvez, até mais que se estivesse doente.

Ou talvez não seja nada disso e minha mente estava mais uma vez me pregando uma peça: assumo que tento descobrir sentidos ocultos em tudo e insisto em ver gramas diferentes quando miro o mesmo jardim.

Talvez Beethoven não estivesse nada feliz, afinal, está velho e já não tem o mesmo dinamismo da juventude; talvez estivesse agoniado e cansado por conta da idade. Pode ser isso? Sem sombra de dúvida.

Mas, não consigo deixar de acreditar que há algo a mais, além disso tudo. Não sei o que seria este além e nem me preocupo em saber.  Não consigo viver num mundo onde não haja poesia em tudo que nos cerca, em tudo que nossos sentidos captam. Talvez seja apenas um bocó e o inferno esteja me esperando ou, um iludido e o que me espera é o nada quando meus dias por aqui se findarem. 

Até que esses dias chegam (e torço eu, que demorem) espero encontrar mais e mais Beethovens por aí afinal, não é sempre que recebemos gratidão com um simples carinho. 

PAZ E LUZ

obs.: extraído do diário "Memórias e Lapsos: apontamentos para autobiografia de um maluco"- Ricardo Bernardo.


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