"...Ah, mas o que podemos levar
para aquele outro reino? Não a arte de olhar,
que se aprende muito devagar, nem o que aqui aconteceu. Nada.
Os sofrimentos, então. E, acima de tudo, o peso,
e a longa experiência do amor - justo o que é absolutamente indizível"
(de A Non Elegia de Duíno -
Rainer Maria Rilke)
Maria
queria uma rosa.
Olhando
assim, parece algo simples: é só uma rosa! Mas para Maria, às coisas não eram
assim, tão simples. Quando criança brincava de pés descalços no chão de terra
batida. Mas não era assim, só brincadeira. Seu tempo de brincadeira era curto.
Era entremeado entre o auxílio à mãe na limpeza da Casa Grande e as fugas das
investidas do patrão.
Um
dia, vendo que às investidas do patrão não cessariam e que a mãe, por medo de
perder o emprego ou por negligência, sabia de tudo e nada fazia, Maria juntou
tudo o que tinha (um chinelo de dedo concertado com um prego, duas camisas, uma
calça e uma boneca de pano), e saiu pelo mundo. Aquele foi o último dia que viu
a mãe. Na época, sentia raiva por ela nada fazer. Hoje não mais. Sentiu pena
pela vida que a mãe levou e quando tentou encontrá-la novamente, esta já não
fazia mais parte daqui.
No
processo de fuga, Maria dormiu na rua, pediu esmolas, sentiu frio, teve de
fugir de vários outros "patrões", mas conseguiu sobreviver. Como tudo
na vida de Maria, passar por todas essas provações não foi fácil. Por dias, até
encontrar o que comer era difícil. Sonhava que o ex-patrão fosse aparecer a
qualquer hora e consumar o que tanto desejava. Mas como todo espírito livre e
corajoso, ela seguiu em frente.
Com
o passar do tempo, Maria se tornou uma bela jovem de cabelos cacheados cor do
por do sol. As investidas dos "patrões" continuaram e ela via na face
de cada um a de seu antigo patrão. Sentia medo, mas ainda assim continuou
seguindo em frente. Não vagava no mundo apenas para fugir, mas também e principalmente,
pra se encontrar.
Certa
vez, enquanto passeava por um belo descampado que lembrava a estrada de acesso
à casinha que morava quando criança, viu um casal de enamoradas passeando de
mãos dadas. Uma delas arrancou um botão de rosa que crescia solitária no
descampado, e pôs atrás da orelha da outra. Ambas ficaram ali, trocando olhares
mudos que diziam tudo. Sem pressa, sem medo. Apenas vivendo ali e agora. Maria
sentiu uma satisfação imensa de presenciar aquela cena mágica e desejou
ardentemente, quem sabe um dia, ganhar uma rosa.
Tempos
se passaram. Maria conseguiu se firmar (apesar de seus gametas) e caminhava
rumo a uma trajetória de sucesso. Normalmente tinha muito que fazer e pouco
tempo lhe restava pra se encontrar. Só
lembrava das coisas boas que passou na infância - como as brincadeiras com a
boneca. Ainda assim, algumas vezes ainda lembrava com medo de que o ex-patrão
aparecer.
Conseguiu
a atenção de vários homens. Soube extrair o máximo de prazer deles. Ganhou
presentes caros: correntes, anéis, carros, brincos. Mas, ainda desejava uma
rosa. Claro, ganhou muitos buquês. Mas não era aquilo que queria. Faltava a
magia, a estagnação do tempo, o ar interrompido. Com o tempo, ela deixou pra
lá. Apesar de toda sua saga de vencedora, creia que nunca viveria nada como
aquilo.
Talvez,
por isso, inconscientemente, comprou uma casa perto de uma floricultura. Um
dia, saiu de casa, andando apressada para ir ao trabalho. Uma chuva repentina
começou a cair. O frio de outono gelou seu corpo e ela se escondeu em baixo de
um toldo. Contrariando a lógica climática, o sol abriu espaço por entre às
nuvens e um risco multicolorido atravessou o céu. Ante aquela visão, Maria
sentiu o corpo relaxar e não sentiu mais frio. Sentiu uma paz absoluta e teve
certeza que não sentiria mais medo do ex-patrão e dos "patrões" da
vida. No seu coração só cabia espaço para paz e alegria. Alegria de estar ali,
naquele onde.
Um
homem se aproximou e abrigou-se em baixo do toldo. Estava mal vestido e
aparentava morar na rua. Parou ao lado de Maria. Aquela era a pessoa mais bela
que já havia visto. Olhou o arco íris refletido nas águas que caíam. O brilho
colorido parecia uma auréola pairando acima da cabeça daquele anjo de cabelos
cor do por do sol. O homem continuou a olhá-la. Não era a coisa mais bela que já
havia visto, por conta da beleza exterior. A paz, a alegria e a luz que
emanavam do interior daquela alma é que tornavam ela tão bonita. Uma beleza
quase etérea. A moça sorria com um sorriso perdido no tempo. Parecia saída de
outra dimensão.
Ele
continuou a olhá-la. Não como os "patrões" à olhavam. Olhava pra ela
como uma mãe olha pra seu filho recém nascido. Como um artista admira sua obra
recém acabada. Como deus após soprar vida naquela forma de barro. Era uma
beleza que só podia ser contemplada com os olhos da alma e ele se sentiu grato
por presenciar aquilo.
Ele
atravessou a rua, correu até a floricultura, roubou um botão de rosa, voltou
pra de baixo do toldo e sem dizer nada, entregou a rosa para aquele reflexo do
poder divino.
Maria,
surpresa, saiu de seu devaneio. Fez menção de dizer alguma coisa mas o homem já
havia ido embora. Não queria macular aquela cena com palavras. Morreria feliz
por presenciar aquela cena mística. Por presencia o amor em sua forma mais
pura.
Maria
sentiu-se completa como nunca. Pôs a rosa atrás da orelha. Finalmente Maria
ganhou uma rosa.
Paz
e luz.
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