Bem, devemos tratar as
mulheres como sujeitos independentes, responsáveis por si mesmas? É claro. Mas ser
responsável não tem nada a ver com ser estuprada. As mulheres não são
estupradas porque estavam bebendo ou porque usaram drogas. As mulheres não são
estupradas porque não foram cuidadosas o bastante. As mulheres são estupradas
porque alguém as estuprou.
Jessica
Valenti
The Purity
[O Mito da pureza]
Não
é um fenômeno novo o caso de violência contra mulheres. Aliás, o homo sapiens, como animal que é, em
diversas vertentes de seu comportamento acaba deixando que seu viés primitivo
prevaleça ante questões morais. Sendo assim, é algo corriqueiro o uso de alguma
forma de violência por parte de alguém contra outrem quem tem poucas chances de
defesa (não que esta assiduidade seja perdoável, pelo contrário). E no espectro de comportamentos violentos que nossa espécie apresenta,
temos um que consegue pairar como um dos mais hediondos entre os crimes: o
estupro.
Não
bastasse todo o caos ao qual é jogada uma vítima de estupro – auto-culpa,
vergonha, medo etc – há um fator que imprime outra violência contra a
vítima: o descrédito. É fácil notar – principalmente com a era digital – o quanto
mulheres estupradas tem sua índole posta em cheque numa inversão completa de
valores: o estuprador foi refém da circunstância – a saia curta, a bebida, ela “queria”,
são termos que visam atenuar o crime ante a culpabilidade de quem sofreu a
violência. Não devia estar numa festa aquela hora, quem mandou beber além da
conta e por aí vai...
Toda carga que acaba tirando da vítima sua inocência uma segunda vez pode ter um
aditivo ainda maior quando muitas delas decidem levar um caso ao tribunal. Policiais
despreparados no trato com a denunciante, advogados que tentam à todo custo
questionar a vida pregressa da vítima como um adendo àqueles que acreditam que
ela “merecia” o infortúnio que lhe ocorreu e, talvez, o principal de todos:
o total descrédito.
É
sobre este prisma, o da dificuldade de vítimas de estupro levarem um caso ao
tribunal que o autor dos livros “Na
Natureza Selvagem”, “No Ar Rarefeito”
e “Pela Bandeira do Paraíso” – só para
citar alguns – Jon Krakauer, decidiu empreender a difícil tarefa de esmiuçar este
tema pouco conhecido, porém, de uma imensa importância.
LEIA
MAIS: resenha livro "Pela Bandeira do Paraíso"
Quem
já leu os livros de Krakauer, sabe que o autor não se faz de rogado em assumir
um ponto de vista. Mesmo assuntos que geram polêmica como os limites da
liberdade religiosa, presente em Pela Bandeira do Paraíso, são tratados por um
viés partidário que o autor faz questão de defender e deixar claro. E isso é um
dos fatores que tornam o livros de Krakauer fascinantes.
Neste
em questão, ele resolveu esmiuçar os escândalos de estupro envolvendo um grupo
de jovens que pertenciam ao time de futebol de uma cidade universitária para
pintar um quadro que representa a totalidade do que ocorre em todo território
americano, e possivelmente o brasileiro: tão nefasto quanto o estupro,
é a forma que a vítima é tratada após ele.
O
autor reúne uma gama impressionante de informações através de entrevistas,
registos policias, recortes de periódicos e outras formas de informação pra
tirar da abstrusidade algo que é muito conhecido para vítimas de estupros e
seus familiares que é a dificuldade de levar um caso de estupro ao tribunal. Pior
ainda se o estupro foi realizado por um conhecido – o que não é tão incomum
quanto se pode imaginar. Neste caso, o de estupro por conhecido, há uma grande possibilidade
de a opinião pública concluir que o que ocorreu, a bem da verdade, foi algo que
a vítima procurou ou, no mínimo, quis que ocorresse.
É
o caso, relatado no livro, de Alisson. Uma estudante da Universidade de Missoula
que foi estuprada pelo amigo de infância, Beau, enquanto dormia. Beau, era um
dos queridinhos da cidade por fazer parte do vitorioso time de futebol americano
da universidade. Sendo assim, na concepção dos habitantes locais, alguém de
tamanha importância para a cidade jamais faria isso. Pior: possivelmente Alisson
estava mentindo e queria apenas se aproveitar da fama de Beau para se promover.
O
autor nos apresenta opiniões de especialistas e artigos científicos de psiquiatras
e psicólogos para mostrar o que ocorre, psicologicamente, com uma vítima de
estupro logo após o ato. Temos aquela ideia que se a vítima não lutou até os
limites de suas forças para livrar-se de seu agressor, ela na verdade não foi
estuprada como ainda gostou daquilo. Porém, esse premissa é falsa e de uma maldade
absurda.
Segundo
muitas pesquisas que o autor referencia, não há como prever o comportamento de
uma vítima de estupro, principalmente o praticado por alguém próximo. Muitas ficam
caladas, recolhem-se dentro de seu medo e podem até, nas próximas horas ou
dias, conversar normalmente com o agressor. Isso ocorre, dentre outras coisas,
porque a vítima tem dificuldade em crer que aquilo realmente ocorreu. Há uma
negação baseada que alguém próximo – amigo, parente ou conhecido – jamais faria
algo deste calibre. Somente após um período é que a vítima consegue compreender
a real magnitude do que ocorreu. E não raro, há ainda a a questão da vítima se perguntar se não fez algo indicando ao agressor que ela queria uma relação sexual.
Não
bastasse todo este relato, o autor ainda nos insere em alguns casos que foram a
julgamento e como as vítimas sofrem mais uma violência. Desta vez por parte do
sistema. Advogados tem carta branca para fazerem o que quiserem dentro do
tribunal, mesmo que isso implique em desmoralizar a vítima. Aí, segue-se um
outro pesadelo para vítima que já teve sua vida destruída. Além do
estigma que terá de levar por toda a vida, ainda tem de reviver tudo o que lhe
ocorreu com questionamentos sobre sua vida pregressa e se o estupro na verdade
não é apenas uma invenção.
Este
é um dos principais fatores que levam muitas vítimas a não denunciarem casos de
estupro – junto com a vergonha.
Krakauer,
jornalista por formação, consegue, através de sua escrita clara e objetiva,
colocar todos esses pontos de forma incisiva. Após chegar ao final da narrativa, é
impossível não sentir-se um pouco sujo após tantos e tantos relatos de
violência contra mulheres. Hora por parte do estuprador, hora por parte da
sociedade, hora por parte do sistema jurídico, o que acontece com as vítimas é
uma sequência esmagadora de violência. Sem contar o fardo que ela terá de levar
por toda a vida através de sequelas psicológicas que podem nunca serem sanadas.
“Missoula: O estupro e o sistema judicial
em uma cidade universitária” é daqueles livros que
deveriam ser lidos, discutidos e compartilhados por todos os terráqueos. Enquanto
há desinformação, é ilusório acreditar que um quadro deste mude. Com a nova
onda de desvalorização das mulheres por parte de alguns discursos de políticos boçais,
é imprescindível que haja uma oposição ferrenha a este tipo de figura. E o primeiro
passo é a informação. E isso, Krakauer consegue fazer muito bem.
Boa
leitura.
Livro: Missoula | Estupro e justiça em uma cidade universitária
EmoticonEmoticon