Então... (notas de uma mente inquieta, part.III)


Dependendo do tipo de indivíduo que você é, estes relatos sejam só “mimimi”. Dependendo do tipo de indivíduo que você é, seja um absurdo. Pra indivíduos, assim como eu, pretos, é o cotidiano...

CASO I: Faz uns dez anos. Estava eu sentado no Gramadão da vila A. Era um sábado. Havia ido de bicicleta até o banco sacar o "pagode" (sabe como é a vida do proletário: o dinheiro caiu é sacar logo, pagar as contas antes que gaste o que não tem e as dividas acumularem-se).

Devia ser umas duas da tarde, estava um calor típico de janeiro aqui em Foz. Encostei a bicicleta em uma árvore. Comprei uma coca cola e um cachorro quente. Sentei ao pé da árvore e fiquei ali, tranquilo sob a sombra desfrutando de meu cachorro quente.

Naquele dia não havia muitas pessoas no Gramadão. Talvez pelo calor ou sei lá. Além de mim, umas poucas pessoas e o que chamava atenção era que havia um grupo de três pessoas sentadas mais pro meio do Gramadão. Com eles uma bicicleta e algumas baforadas de cigarro

Uns 5 minutos depois de chegar ali, um grupo de policiais me abordou.

“Por favor, levante-se, coloque as mãos atrás da cabeça e abra as pernas.”

Não entendi o motivo da abordagem, mas obedeci. Só fiquei triste pq não tinha onde deixar meu cachorro quente e com movimento de colocar as mãos atrás da cabeça, ele caiu no chão.

Fui revistado, me pediram os documentos pra averiguar se eu tinha alguma "passagem". Confirmaram que não.. perguntaram o que eu fazia ali e o que fazia da vida. Expliquei que naquele exato momento tinha ido sacar meu pagamento e parei pra comer alguma coisa; que trabalho no CCZ e que fazia faculdade.

Se olharam, revistaram minha bolsa. Não encontraram nada que interessasse. Falaram que eu poderia sentar e que estavam ali me abordando pq tinham recebido uma denúncia de que havia alguém vendendo drogas, naquele momento no Gramadão e que este indivíduo estaria de bicicleta. Após isso foram embora.

Pensei então que iriam abordar aqueles três indivíduos já que lá tinha alguém de bicicleta. Mas não. Passaram direto por eles. O que diferenciava eu deles? Além de estarem em três e eu sozinho, os três eram brancos e eu preto.

CASO II: Corta pra uns 8 anos atrás. Estamos eu e mais três colegas de trabalho fazendo uma vistoria referente a morcegos no forro. Explicamos para o dono do imóvel que ele teria de vedar todas as entradas do beiral da casa dele que (era um de dois pisos) para que os morcegos não pudessem mais entrar. Como era uma casa de pé direito bem alto, orientamos ele a contratar alguém que entenda do serviço pra realiza-lo de forma adequada e porque, como era um local alto, alguém que  se atinasse para as questões de segurança. De pronto o dono do imóvel diz: “onde eu vou arrumar um “ NEGÃO” pra fazer isso”. Nos olhamos, aquele olhar de constrangimento no ar. Meu colega comenta: “então, tem que ser alguém com equipamentos de segurança (sinto, corda...) pra evitar um acidente. O cara replica: “pois é rapaz, por isso que tenho que arrumar um ‘NEGO’ porque, se cair, é negão. Aí não dá nada.

CASO III: Corta para o ano de 2019. Estamos eu e minha esposa fazendo compras em determinado mercado da cidade. Estou com o celular riscando os itens que estamos pegando. Reparamos que uma segurança fica nos acompanhando por entre as prateleiras do mercado aonde quer que vamos. Claro que olho em volta e vejo que o único objeto de preocupação da moça sou eu. Tento fingir que não tem nada acontecendo. Qdo se é muito tempo (no meu caso, há 34 anos) objeto de olhares desconfiados, ou você vive uma revolta continua ou tenta/finge não ligar. Escolhi o segundo (admito, erro crasso). Tempo depois, a moça não se contém, me aborda e pergunta se eu estava com algum problema ou se queria alguma coisa. Engraçado que neste dia estava de short, camiseta. Não carregava nada além do cell. Um colega do serviço tbm está ali fazendo o msm exercício que eu (riscando no cell  os itens já adquiridos) mas não foi objeto da “ajuda” da segurança. Com o detalhe que ele estava com uma bolsa nas costas. O que diferenciava eu dele: um branco e outro preto.

CASO IV: Corta para o início deste ano.   Estou parado no ponto de ônibus. Em uma mão, um café num copo plástico e na outra um livro (pra constar, “Os Irmãos Karamazov”). Uma viatura passa, da meia volta e encosta.

“Posso saber o que senhor faz aqui?” me pergunta o policial.  A despeito da pergunta ser meio óbvia, respondo, “Estou aguardando o ônibus”, ao que ele responde, “ahram, sei! Por favor, documentos!” Entrego meu RG. Ele pega, entrega pra um dos guardas que ficou na viatura e me pergunta o que eu faço da vida. Respondo que trabalho e faço pós graduação. Ele dá uma risada sonora, olha pra um colega dele e diz: “ah, sei. Olha, esse é pós graduado. Deve ser mais um comunista.”

Me revista. Ouve do colega que averiguou minha ficha que ela estava limpa. Devolve meus documentos e diz: “fica esperto piá. Estamos de olho...”

CASO V: Corta pra hoje, dia 20/11. Saí meio em cima da hora pra ir trabalhar. Uns 300 metros de casa, me dou conta que estou sem meus óculos. Dou meia volta pra casa pra busca-lo. Na esquina de casa, um carro branco vem em minha direção, me fecha. Subo na calçada (estou de bicicleta) e paro. Já vou dando um sorriso pensando se tratar de algum conhecido pregando alguma “piada”. Olho e vejo que não conheço o indivíduo. Ele olha pra mim e diz: “feliz dia da consciência negra macaco...”. Enfim, como disse lá no início do texto. É só mais um dia...

Aí, me pergunto: feliz dia da Consciência Negra!, ou feliz dia da Consciência Negra?

Vinte de Novembro. O que tenho a dizer sobre esse dia? Bem, alguns relatos breves, mas, antes, gostaria de dizer que pra mim, a despeito da escravidão ter sido abolida há 130 anos, alguns estigmas ainda permanecem e tenho a impressão de que continuarão por muito, muito tempo...

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obs 1: sobre os casos I, III E IV, existem muitos policiais e vigilantes de estabelecimentos (creio eu que a maioria) que procederiam de outra forma, mas...

Obs 2: sobre II E V, é só o ser humano...

obs 3: acreditem, esses não foram os piores casos...

(texto não revisado. Perdoem os erros gramaticais...)

[RESENHA] Malcolm X: Uma vida de reinvenções, de Manning Marable


"Lutamos para sermos reconhecidos como seres humanos..."


Malcolm X passou para a história como um defensor ferrenho do povo Afro-americano sendo um sujeito muito controverso por conta dos métodos que ele julgava válidos para essa defesa que, contrastavam muito com seu contemporâneo, Mathin Luther King Jr. Enquanto o segundo pregava uma revolução não violenta o primeiro via na violência um meio possível para alcançar um fim. Porém, colocar Malcolm apenas como um ativista violento é reduzir em demasia a vida deste cameleão que nos anos de 1950/60 foi um símbolo pela luta dos direitos da negritude e, mais para o final da vida, também dos direitos humanos.

Nascido em uma família pobre do meio oeste americano, Malcolm Little teve uma infância marcada pela pobreza. Seu pai faleceu quando ela tinha seis anos e, ao que tudo indica, fora assassinado por algum grupo de supremacistas brancos. Desde cedo, Malcolm ficou a par das questões da opressão dos negros norte americanos já que seus pais faziam parte de grupos que lutavam por igualdade entre os indivíduos. Porém, por muito tempo, Malcolm não se interessou de forma ativa pela causa e isso é uma das principais características dele: suas metamorfoses.

Sua vida foi um looping intenso de mudanças que torna toda e qualquer análise retilínea dele um equivoco. Foi, desde um sujeito que só queria "se dar bem" neste mundo, lançando mão de práticas nada "católicas" - foi traficante, cafetão, ladrão..., nesta época era conhecido como Detroid Red - até trabalhou como vendedor ambulante em linhas de trem. Porém, sua vida muda mesmo quando é preso e, na cadeia conhece o culto muçulmano “Nação do Islã”. Como  ministro desta seita, Malcolm projetou uma imagem de um homem habilidoso verbalmente e implacável na busca pelos seus direitos e de seu povo. E para entender suas ideias é importante entender a seita. 

A Nação do Islã é um grupo religioso qfundado por Wallace D. Fard Muhammad em 1930. Sua teologia é, no mínimo, bizarra: Fard pregava que o homem branco surgiu através de técnicas de disgenia criadas pelo cientista Yacub. Este perdera o controle de sua criação pois os brancos, segundo a Nação, seriam os próprios demônios que passaram a escravizar os negros.

Malcolm teve contato com esta seita quando estava preso e logo se sentiu atraído pela ideia pregada por ela de separação total de raças diferentemente do que pregavam a maioria dos ativistas pelos direitos dos negros a época – mais notadamente o pastor batista Martin Luther King Jr. (esta “rivalidade” entre ambos seria usada para compor as características de dois personagens muito famosos de HQs: Magneto e Professor X). Quando sai da cadeia Malcolm Little passa a ser denominado de Malcolm X e se torna o grande porta voz da seita sendo o principal responsável por sua disseminação.

Muito eloquente, Malcolm costumava chamar atenção por seus discursos inflamados onde conclamava os negros a não se curvarem diante da opressão. Pelo contrário, se fosse preciso realizar uma resistência violenta, armada, que assim fosse (muito de suas ideias acabaram por inspirar m outro grupo, "Os Panteras Negras"). Essa defesa da violência como meio de conseguir seus espaço na sociedade, ecoou nos ouvidos e mentes de muitos negros, principalmente pobres, que estavam cansados do racismo e viram em Malcolm e na Nação um caminho a se seguir e uma valorização de seu povo. É até interessante notar que na defesa da separação das raças, Malcolm e a Nação chegaram a simpatizar com a Klu Klux Kan por ambos defenderem a não miscigenação.

Devido a problemas internos com  o líder da seita Elijah Muhammad e seus filhos, Malcolm acaba expulso da seita e nos anos que antecederam seu assassinato, passa a enxergar que é possível uma convivência harmônica entre indivíduos de cor de pele diferente. Porém, os desafetos que Malcolm já havia conseguido dentro da Nação do Islã (membros da nação atearam fogo na casa de Malcolm quando este fez denuncias sobre os casos extraconjugais de Elijah, por exemplo) o impediram de continuar sua caminhada em uma vivência mais harmônica com seres de todos os povos.

“Malcolm X: Uma vida de reinvenções” é um livro que aborda a vida de Malcolm como um todo. Desde seu casamento claudicante (com suspeitas de traição por ambas as partes); as investigações de seus passos pelo FBI e até suas contradições – como se aliar a Klu Klux Klan, entidade que lutou e muito para tornar pior a vida dos negros. Este é um livro que  lança luz sobre  vida de um homem que de forma torta porém implacável lutou para ter o sonho de ver a povo  negro não sendo mais discriminado e violentado por questão referente a sua cor.   



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Malcolm X: Uma vida de reinvenções. (Malcolm X: A life of reinvention, EUA, 2011)
Páginas: 648
Autor:  Manning Marable
Editora: Companhia das Letras
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