[RESENHA] 1984 I "Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força..."


Nota: ★★

Caso não tivesse se tornado um escritor de ficção tão aclamado mundialmente, George Orwell, provavelmente, teria gravado seu nome na história. Foi um cronista e resenhista muito famoso e polêmico no seu tempo além de ter participado da Guerra Civil Espanhola – relato este que se tornou livro, “Lutando na Espenha” (Homage to Catalonia, 1938) – onde o autor além de fazer um relato sobre sua passagem pela guerra, faz uma crítica ferrenha ao regime comunista soviético. Porém, como muitos espíritos dotados de talento e inquietação, Orwell alçou voos maiores e entregou dois livros que são duas grandes alegorias e metáforas sobre as fraquezas humanas e o estado controlador, tendo como foco inspirador a União Soviética de Joseph Stalin – mas não restringido somente a isto: “Revolução dos Bichos” (Animal Farm, 1945) e “1984”. Aqui, trataremos do segundo que acabou por ser o último livro do autor que morreu no ano seguinte a publicação da obra.

1984 é o grande clássico das distopias. O mundo, após sucessivas guerras, acabou dividido em três grandes blocos: Eurásia, Lestásia e Oceania que estão sempre em guerra, mudando apenas quem ataca quem e qual bloco faz aliança com qual. O livro foca sua narrativa no personagem Winston Smith, morador de Londres (cidade que pertence ao bloco da Oceania) funcionário dO Partido (que controla tudo)que começa a questionar a realidade na qual está vivendo pois nota que o que vê, ao que tudo indica, não está de acordo com o que o lhe contam. Falando assim, parece só mais uma distopia que nos últimos tempos lotam as livrarias com suas narrativas ficcionais e que são esquecidas logo após o ponto final. Porém, 1984 é uma imersão em um mundo controlado por um governo onisciente que toca profundamente a psique de quem se aventura por essas páginas.

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O livro é divido em três partes: a primeira trata de explicar o mundo onde Winston está inserido; a segunda foca nas inquietações do personagem; a terceira narra o desfecho dessa história. Navegando por essas três partes, Orwell cria um universo com um forte paralelo com a União Soviética de Stálin. O Partido que controla tudo está presente em toda seara de relações humanas. Seu comandante é o onipresente e onisciente “Big Brother” que observa tudo através das Teletelas - espécie de televisões que além de transmitirem conteúdo servem para espiar a vida das pessoas. Mas, o monitoramento não fica restrito a isso. A vida de cada individuo é observada de perto pelos membros do partido e até um sorriso em um momento inoportuno pode ser indicio de subversão.


E não é só pelo medo que todos são controlados. Com sua estrutura perene, o estado cria novas ferramentas para manter-se no controle. Desde novas versões pra fatos do passado até um novo idioma. Indo além e incutindo nas pessoas a ideia de que verdades excludentes podem coexistir desde que de acordo com os anseios e vontade do Partido. É o tal do Duplipensamento: 2+2=5... toda essa maquinaria dividida entre os vários ministérios do governo, não levam em conta o bem estar do população e sim a conservação da estrutura do Partido...

No momento em que escrevo esta resenha, estou lendo o livro Vozes de Tchernóbil (The Chernobyl Prayer, 1997), de Svetlana Alexijevich, Nobel de Literatura. Um livro fantástico sobre a catástrofe nas usinas nucleares na Ucrânia, e em meio a tantos relatos, um que se sobressai é a forma como o governo soviético controla as pessoas. Fica claro, através dos depoimentos, que o Estado anulou o individuo sobrando um ser que vive em prol dEle. Estado este que usa de suas artimanhas e hediondez para manter-se vivo. Orwell conseguiu transmitir em suas páginas essa mesma figura claustrofóbica e temível na figura do Big Brother. Entretanto, como o autor já disse em entrevistas, seu livro não é apenas uma critica ao Stalinismo mas a toda forma de totalitarismo e suas práticas.


Hoje, sempre consta na ordem do dia de algum mandatário, ou aspirante a tal, a figura de algo ou alguém que pode levar a derrocada  de nossa sociedade: os imigrantes, as mulheres, os gays, os comunas, os capitalistas.., são muitos os “monstros” à espreita só no aguardando da oportunidade para dar o bote. Fazem isso com o intuito de causar medo e repulsa e uma vez que compramos a ideia eles passam a ter o poder de fazerem o que quiserem. E, vejam, isso não é exclusivo de governos de esquerda. Muitos governos de viés liberais também tem seus monstros a serem combatidos. É só assistir a qualquer jornal que será fácil enxergar isto...

Em 1984, esse grande vilão é Emmanuel Goldstein. Um traidor da pátria com sua eterna tentativa de revolução, porém, o que fica subentendido é que Goldstein nem exista sendo somente um artificio  do governo para justificar suas posições questionáveis e sua tirania contra o povo.


O final do livro é de um pessimismo acachapante. Ali, no mistério do Amor (ironicamente chamado assim pois neste ministério é que ocorrem as torturas), vemos como o Estado usa de todo seu aparato  para obrigar as pessoas a dobrarem-se a sua vontade. Não há escapatória. Na época, muitos criticaram Orwell por essa visão desesperada e pessimista. O que eles esquecem é  do momento histórico no qual o livro fora concebido:

A Segunda Guerra Mundial recém havia terminado; o mundo ainda respirava o medo radiônico de Hiroshima e Nagasaki; a ONU havia aprovado a divisão da Palestina em dois estados contra a vontade do povo ÁrabeStalin continuava à frente do vasto império soviético; e tinha se consolidado os dois blocos da Guerra Fria. Num cenário como este, onde o fim do mundo radiativo se apresentava com uma ideia nada absurda e os governos demonstravam sua força para além da misericórdia humana, não é de espantar que Orwell capitou esse negativismo e transcreveu isso em suas páginas. Eu, da minha parte, achei o final condizente com tudo que fora apresentado na obra.

1984, antes de ser um estudo do passado é um alerta sobre o futuro. Sobre como nós, como sociedade, como povo e como nação nos comportamos ante as pessoas, instituições e corporações que tentam nos controlar através do medo, do desejo, da necessidade, do messianismo. E, como bem sabia o Big Brother: “quem controla o passado controla o futuro”


Pra fechar este corolário, em uma época em que o medo pode nos levar a acreditar em qualquer governante que apresente uma solução imbecil, cito uma frase de uma Graphic Novel que gosto muito, V de Vingança
"Igualdade, justiça e liberdade são mais que palavras, são perspectivas"  

Boa Leitura.

1984 ( 1984, 1949)
Páginas: 416
Autor:  George Orwell
Editora: Companhia das Letras
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E agora, o que sobra depois disso tudo?


Outro dia filmei algumas formigas fazendo seu trabalho habitual. Elas caminhavam em fila, cada qual levando seu fardinho de folhas com seu propósito bem delimitado por sua programação biológica. Não sei o que se passa na cabeça de uma formiga; se ela para e pensa: bem, hoje não vou trabalhar! Vou ir pro baile anual das formigas natalinas pois a vida é muito curta, ou coisa assim. O fato é, ao que tudo indica, o propósito da formiga é este: nascer, crescer, carregar folhas – reproduzir, quando pertencente a esta casta- e morrer, mesmo que elas não saibam disso...

Daquele dia em diante, e cada vez com mais frequência, me pergunto qual o sentido da vida. Para o religioso a resposta e bem simples: isso aqui é só um laboratório onde você será testado no decorrer da sua vida. Cada escolha sua determinará qual será seu destino em uma outra vida. Agora, para pessoas que não são assim, tão atadas a princípios místicos, as coisas podem não ser tão simples assim... 

Claro, há aqueles que creem que não há propósito algum sendo a vida uma simples manifestação de processos químicos e biológicos e que um dia, de acordo a Termodinâmica e sua Entropia, tudo resultará em uma estagnação total de energia levando ao que chamamos de morte. Mas, infelizmente, não me sinto pertencente a nenhum desses dois grande grupos...

Sendo assim o que me resta? Qual seria o sentido de tudo isso? E, acima de tudo: será que há algum sentido em tudo isso?

Sim, eu sei que muitas pessoas melhores e mais inteligentes que eu se debruçaram sobre estas questão e muitos, provavelmente a maioria, falhou em chegarem alguma conclusão que sanasse seus questionamentos. Mesmo assim, é complicado não pensar nisso. De uns tempos pra cá muitos que me são próximos estão partindo deste plano e toda vez que isso ocorreu – alguns inclusive novos demais – perguto-me: e agora? Será que há algo além da luz branca no fim do túnel? Será que há o tal túnel? E a luz?

Por vezes vejo tanta maldade no mundo, tanta gente boa padecendo que me forço a acreditar que tende haver algo. Não pode ser justo que haja tanto sofrimento direcionado a pessoas boas ou inocentes sem que exista alguma coisa atrás da cortina que dê a verdadeira felicidade a essas pessoas. Não pode ser justo acabar tudo assim, eternamente para aquela criança que morreu porque uma bomba jogada por alguém em um banker acertou o alvo errado; ou que aquele jovem tenha morrido porque suas células simplesmente começaram a se reproduzir de forma desenfreada...

E tem momentos que chego a uma espécie de esboço de conclusão que, enfim, é só isso mesmo. As asas indiferentes do azar estão aí roçando em qualquer um e é impossível determinar quem será o próximo acariciado pelo seu abraço. E tanto uma conclusão quanto a outra me assustam!

Havendo um outro Onde, quem define quem vai para o lugar bom e o lugar ruim? Não, não compactuo com a ideia de um ser divino, misericordioso e de amor que deixaria seus filhos arderem eternamente no fogo da perdição. Dona Lú, senhora minha mãe, com todas as suas loucuras e contradições não deixaria que isso ocorresse com este que vos escreve. Imagina em ser de amor! E, no outro espectro, viver assim, sabendo que após isso não há nada, o que sobra para esses que foram tão cedo e não puderam desfrutar daquilo de bom que nosso mundo doido e inconstante tem para oferecer?

Claro que não cheguei à conclusão alguma. Ideias assim são abstrusas demais para uma mente tão pequenina que nem a minha. Quem sabe algum dia chegue a alguma conclusão. Ou talvez a ciência evolua e possa provar a totalidade dessas coisas. Ou eu possa ser tocado pela chama de algum espectro divino e me encontre em alguma forma de fé onde as respostas serão todas respondidas. Enquanto isso, tento ser que nem as formiguinhas com seu caminho, tentando viver com algum propósito, mesmo sem saber qual propósito seria...  


Livros de Sangue: vol. 1 I o horror em sua forma crua


Livro de contos de Clive Barker

Nota: ★★

Clive Barker conseguiu se firmar como um expoente do terror e fantasia graças a sua grandiosa imaginação. Adentrar o universo criado por Barker é ter certeza de perscrutar histórias que trarão uma gama acachapante de sensações: medo, nojo, ansiedade, prazer, lascívia,  tudo se mistura neste caldo e o resultado só poderia ser ótimo.

Livros de Sangue é uma série de seis livros de contos. Neste primeiro volume, somos apresentados a seis contos onde a surpresa é o que impera. O autor consegue surpreender de forma ímpar com suas histórias que além de inventivas, são escritas com um detalhismo tão profundo que não seria surpresa acreditar serem fatos verdadeiros não fosse a natureza surreal do enunciado.

O primeiro conto, “Livro de Sangue”, que serve como uma espécie de prelúdio tem como premissa uma casa assombrada. Mas, não espere para uma narrativa comum de fantasmas e demônios: uma investigadora de fenômenos paranormais está fascinada com seu novo pupilo, porém, ela desconhece que as mentiras dele irão despertar a ira dos mortos. Neste conto, além de muito terror e violência, há uma nuance muito forte e presente nos livros de Barker: o sexualização - que é retratada de forma mais forte em outro livro seu resenhado aqui no blog, O Desfiladeiro do Medo  - resenha AQUI

Os outros contos vão desfilar toda a genialidade de Clive Barker. Os roteiros são bem engendrados e os personagens são de uma pluralidade incrível. Desde um psicopata (O Trem da Carne da Meia Noite), passando por um porco (Blues do Sangue de Porco) que te fará enxergar esses bichos com outros olhos. E temos até um gigante feito de pessoas (Nas Colinas, as Cidades). De todos eles, destaco o incrível “O Yattering de Jack”, onde um demônio tenta assombrar um homem em particular, porém não será nada fácil. Neste, o humor negro impera dando um tom irônico e inventivo ao conto.  

Livros de Sangue, Vol. 1  é um livro raro por essas bandas e quando encontrado, o preço acaba por afugentar o leitor. Mas, caso você consiga ter acesso a este incrível material, terá de concordar com o que o mestre do terror, Stephen King, disse sobre Clive Barker: “Eu vi o futuro do Horror... E seu nome é Clive Barker”.

Boa Leitura!


Livros de Sangue: vol. I ( Books of Blood: vol. I, 1984)
Páginas: 233
Autor:  Clive Barker
Editora: Civilização Brasileira

[RESENHA] Servidão Humana | um ode a inquietação, abismos e asas...

Neste misto de autobiografia e ficção, o final da jornada só é superado pelo caminho feito até ali...


Nota: ★★

Se você me perguntar como cheguei a este livro a resposta é a seguinte: Se7evn – os sete pecados capitais. Caso você não tenha visto este filme, veja e saberá do que estou falando. Nunca havia lido nada do autor e fiquei maravilhado com sua escrita que consegue criar uma imersão profunda pautada na vida de sofrimento e superação do personagem central que tem um "Q" de autobiografico...

No livro somos apresentados a Phillip Carey que nasce com uma deformidade no pé que sempre será um ponto fraco físico e psicológico. Não bastando isso, a roda indiferente do destino fez com que o personagem perdesse os pais e fosse criado pelos tios que atados a compromissos religiosos com a paróquia, não tem tempo (talvez vontade?) de dedicar o amor que Phillip necessita - principalmente o tio. Doravante, acompanhamos a vida de Phillip, desde sua educação primária com forte viés religioso, passando pelo descobrimento dos prazeres sexuais, as mudanças na forma de ver e se relacionar com o mundo e, talvez o que, num primeiro momento chama mais atenção, sua relação de amor e ódio com Mildred...

Servidão Humana foi escrito no ano de 1915. Como muitos autores da época, William Somerset Mugham, em seus primeiros livros, faz uma mescla de sua vida e ficção: se no livro o Phillip é claudicante, William é gago; ambos estudaram em escolas religiosas e, posteriormente passam a ver a religião como algo claustrofóbico que serve mais para escravizar do que salvar o individuo...

Passeando por muitas searas do conhecimento – arte, filosofia, história, religião... – o autor consegue discorrer com maestria por todas elas de forma profunda, reflexiva e de agradável leitura – ficando só um pouco cansativo os momentos em que ele se alonga em demasia por vários parágrafos discorrendo sobre alguns pintores...

Independente de partilhar ou não com a visão do autor, é inegável que suas ideias tem um embasamento forte o que no mínimo gera um ponto de interrogação na cabeça do leitor. Principalmente no que concerne ao campo da religião: neste tema específico, vemos como Phillip vai aos poucos deixando que mais e mais incertezas tomem forma em sua mente fazendo com que as regras e dogmas cristãos fiquem de lado ante suas próprias sensações e vivências...  

E apesar de flutuar por muitos temas abstratos e intelectuais, o autor não deixa de lado as relações humanas. Assim, vemos a avareza e desejo de nortear a vida de seus pares na figura de seu tio, ou a da boêmia que leva ao ocaso na figura de um conhecido escritor que Phillip conhecera em Paris. Tudo isto feito de forma não apenas a te jogar informações mas para que você sente-se de frente para o espelho e pense: e eu, como vejo tudo isso? Mas, falar de servidão Humana e não citar a relação de Phillip e Mildred é impossível...

Desde as primeiras aparições de Mildred, o autor já deixa claro que ela terá um papel importante no sofrimento e, posteriormente, amadurecimento de Phillip. A forma como ele decide abordar esta relação imprime uma inquietação e até um dose de raiva: as humilhações que Mildred impõem a Phillip remetem aqueles relacionamentos em que uma das partes crê que de uma hora para outra o outro irá se transformar ante o amor lhe dispensado e toda sorte de sofrimento irá acabar. E neste caminho, Phillip, além de sofrer e amargar o dissabor da desilusão, acaba deixando de abraçar outras oportunidades de ser feliz...

Mas esta relação é uma espécie de microcosmo representando toda a vida de Phillip. Sua desilusão com a religião, a descida até a miserabilidade culminando com o limiar da fome até a redenção na figura de um conhecido, traçam um paralelo com a relação nada sadia dele e Mildred. É como se os picos de felicidade entremeados com longos períodos de sofrimento fossem uma extensão direta de sua devoção quase mística a Mildred...

Ler Servidão Humana é mergulhar num mundo onde as certezas sobre o que se é e como se vê as coisas são apenas borrões. Não há nada definido e no percurso de se encontrar no mundo você é jogado no mais puro abismo. Porém, ao se ver envolto nas asas das incertezas e das angústias, para aqueles que não se deixam sucumbir, é possível vencer os muros das próprias barreiras psicológicas e alçar vôos até então inimagináveis...

Boa leitura

Servidão Humana ( Of Human Bondage, 1915)
Páginas: 605
Autor:  William Somerset Mugham
Editora: Globo