Filme "Extraordinário" é uma manual prático de como emocionar o espectador...


A única razão de eu não ser comum é que ninguém além de mim me olha dessa forma
(August Pullman)
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Um dos grandes desafios de adaptar uma obra literária para as telonas é conseguir captar a essência da obra original e reproduzi-lá em outra mídia. São muitos os casos de livros de sucesso que solaparam violentamente quando foram para às telonas. Quando o livro em questão tem seu ponto forte em emocionar o leitor, fazer emergir esta mesma emoção no telespectador, sem se tornar uma coisa pedinte e melosa, é mais difícil ainda. Graças ao lado luminoso da Força, não é o caso da obra em questão, pois o diretor Stephen Chbosky conseguiu fazer algo Extraordinário (hahah, perdoem-me, não deu pra segurar o trocadilho...)

Adaptado do livro homônimo de 2013 da autora R.J. Palácio (resenha AQUI), Extraordinário conta a história de Ausgust Pullman, um garoto que nasceu com problemas genéticos graves o que determinou que ele apresentasse uma aparência diferente. Educado por sua mãe em casa, Auggie foi meio que criado dentro de uma redoma de amor e proteção dos males externos por sua família. Porém, seus dias de tranquilidade são abalados quando seus pais decidem matricula-lo em uma escola regular para cursar a quinta série...

O filme é dirigido por Stephen Chbosky. Ele já dirigiu outra adaptação muito carinhosa e querida pelos fans, As Vantagens de Ser Invisível. Aqui, ele soube mesclar o emocional com humor de forma precisa levantando questões relevantes para nossa convivência como ser social: o diferente é ruim?  por quais motivos vale à pena lutar? O quanto deixamos de enxergar quando nos focamos demais em  um ponto só? Crianças são sempre inocentes? É tão difícil assim ser gentil? Será que minha vida é realmente tão pior que a sua? São perguntas que vão sendo feitas no decorrer da trama e aparecem sempre nos momentos certos de cada cena. Muitas delas mexem com nossos sentimentos nos fazendo reavaliar muitas coisas sobre os outros e principalmente, sobre nós mesmos. Mas o autor sabe dosar o apelo emocional do filme com cenas engraçadas o que suaviza a narrativa. Li o livro e tinha receio que fizessem um negócio sentimentalóide com o objetivo de trazer emoções de forma gratuita. Não foi o caso. E tudo isso funciona, também, pela escalação do elenco...

Olwen Wilson faz o pai de Auggie, um cara engraçado que sabe que o mundo lá fora tem tudo pra dizimar o filho mas tenta levar tudo com muito bom humor; Isabel Pullman ( Julia Roberts)  a mãe de Auggie, que basicamente parou sua vida pra “viver” a do filho. Abnegada, não mede esforços pra tornar o mundo de Auggie melhor o que acaba deixando-á míope para outra coisas como a filha mais velha, Via Pullman (Izabel Vidovic), que aprendeu a viver à sombra do irmão de forma até compreensiva, Porém, como qualquer um de nós precisa de atenção e sente que é deixada de lado...

A vida na escola não é fácil para Auggie. Acostumado com os olhares assustados das pessoas, ele não está preparado para uma das faces abstrusas da psiquê humana: bulliyng. Apesar dos cuidados que o diretor da escola toma, é complicado controlar crianças quando estas decidem serem más e há um deles,  que é particularmente terrível. Mas o autor faz uma pergunta sobre o porque deste garoto ser ruim e a resposta pode estar externa à ele: há uma cena com os pais dele conversando com o diretor mostrando o quanto podemos incutir em nossas crianças comportamentos negativos e execráveis pautado num manto de que temos o direito para tal...

E, claro, um bom filme com crianças no elenco não pode faltar amizade. Will (Noah Jupe) acaba se aproximando de Auggie a pedido do diretor mas acaba realmente gostando dele. Mas, nem todos os outros alunos gostam do novo aluno e ir contra o comportamento dos outros à sua volta requer muita presença de espirito e foco naquilo que ser quer. Por isso, em uma determinada cena da festa de Halloween, Will faz algo que acho "compreensível" e evidencia o quanto às vezes, trabalhamos para manter perto pessoas ou algo que nem queremos de fato. Fazemos somente para pertencer, pra não ser o diferente...

Reparem que não falei muito de Auggie. Pois bem, é de proposito. Se fosse falar aqui sobre ele, este texto ficaria do tamanho de uma monografia tão amplo os ensinamentos que este garotinho nos traz. Vivido de forma ótima por Jacob Tremblay, Auggie sabe que é diferente mas não quer nada melhor nem pior que os outros: só quer ser comum. E o desenrolar da sua vida com aprendizados e percas é de encher os olhos de tão emocionante. Há uma cena no final do filme, num acampamento de verão em que Auggie e Will tem um determinado problema mas que graças a alguns fatores (pessoas?) que eles não imaginavam, conseguem se safar que é phoda. O diretor conseguiu transmitir tudo o que aquilo representou para Auggie sem dizer nada. Só mostrou. Foi foda pá caráleo (fiz um esforço “daqueles” pra não chorar... =) e aquilo toca a gente de forma tão profunda e me lembra que em alguns momentos, gestos tão simples podem significar uma vida inteira...

Belo, engraçado, emocionante e cheio de aprendizagens, Extraordinário faz jus ao material fonte entregando um filme bonito que deve ser apreciado por todos aqueles que tencionam tornar-se algo melhor do que são agora. São lições pra se levar pra vida toda pois como disse o diretor Buzanfa: “se forem apenas um pouco mais gentis que o necessário, alguém, em algum lugar, algum dia, poderá reconhecer em vocês, em cada um de vocês, a face de Deus...”  


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Extraordinário (Wonder, EUA 2017)
Roteiro: Jack Thorne, Steve Conrad, Stephen Chbosky (baseado em romance de R.J. Palacio)
Direção: Stephen Chbosky
Elenco: Jacob Tremblay, Julia Roberts, Owen Wilson, Izabela Vidovic, Danielle Rose Russel, Noah Jupe, Millie Davis, Bryce Gheisar, Mandy Patinkin, Daveed Diggs, Nadji Jeter, Ali Liebert, Elle McKinnon, James Hughes, Ty Consiglio, Crystal Lowe, Kyle Harrison Breitkopf, Sonia Braga 
Duração: 113 min.

[RESENHA] A Casa Negra, de Stephen King e Peter Straub

“Há outros mundos, pistoleiro, e outros demônios. Essas águas são profundas. Fique atento aos portais. Fique atento às rosas e aos portais ausentes.”
(O Pistoleiro, A Torre Negra I)
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Assim como faria com Danny Torrence de O Iluminado, Stephen King, desta vez repetindo a parceria com Peter Straub, conta a história adulta de um menino que aprendemos a adorar a admirar. Se, no primeiro caso, ouve uma permanência de tom nas histórias, aqui os autores apostam mais no lado sombrio. Não que não haja o tom fantasioso presente nO Talisma, há sim. Entretanto, a história de Jack Chambers, 20 anos após sua odisseia pelos Territórios, é pautada por um atmosfera sombria, flertando em alguns momentos com o gore, trazendo para as páginas uma história da parte sombria que pode existir nas pessoas; de como o mal não modifica a natureza benevolente do individuo, ele apenas repousa em seus iguais; é um livro que incomoda o psicológico mas que crê na ideia que as coisas possam dar certo; e ainda temos uma incursão no universo da saga A Torre Negra.


O livro conta  a história de Jack Chambers, 20 anos após sua incursão pelos Territórios (livro O Talismã), um detetive aposentado precocemente, que se muda para uma casa na pacata cidade de Frenching Landing, Winsconsin e que quase não recorda dos fatos fantásticos que lhe ocorreram na infância. A paz de nosso personagem é interrompida quando uma série  de crianças  são sequestradas e, posteriormente, assassinadas por um serial killer  conhecido como O Pescador, (que, dentre outras coisas, devora parte das vitimas). O delegado local, Dale Gilbertson, que sem conseguir desvendar os crimes e sofrendo pressão de todos os lados, pede ajuda à Jack nas investigações. De inicio, ele se nega, porém, ao perceber que os crimes tem uma forte relação com os Territórios,  Jack acaba voltando a ativa e descobre que as implicações destes crimes vão muito além de um louco que mata e devora crianças: eles podem contribuir para o colapso de toda a existência...


De início, o livro começa com uma narrativa bem lenta. King e Straub fazem um retrato bem detalhado da cidade e de seus habitantes pra nos inserir dentro da realidade  local. É possível sentir o “cheiro” de tranquilidade emanando da cidade. As coisas começam a mudar quando, logo algumas páginas depois, somos inseridos no interior da delegacia e vemos a aura de cansaço e impotência que envolveu a força policial pois, há um assassino à solta e eles não fazem a menor ideia de quem seja...

Nessas primeiras páginas, já nota-se que há um certo distanciamento no tom narrativo de seu antecessor: enquanto em O Talismã vemos um olhar mais fantástico, aqui, apesar da forma quase irônica que o narrador descreve as situações (mais sobre isso adiante...), é tangível o teor sombrio do enunciado. Conforme as páginas vão passando, essa sensação de obscurantismo vai ganhando corpo tendo seu ápice nas descrições do modus operadi do assassino – que sabemos de antemão quem é, por isso, não espere um quebra-cabeça pra descobrir a identidade do assassino. É quase um relato gore semelhante aos horrores que vemos em filmes como Jogos Mortais e o Albergue. Não bastasse isso, o lado negativo de alguns personagens, principalmente o jornalista Wendell Green, são revelados e é como se fosse um eco da Casa Negra...

Por falar em Casa Negra, uma mansão que é difícil de ver e quase impossível de entrar. É um daqueles locais que vemos em muitas histórias de King que levam para outros mundos, outras realidades. E, assim como o Hotel Hoverlock, está cheia de maldade e sofrimento que a morte rápida seria um caminho melhor, pois ali, é a morada de um ser, uma espécie de um demônio vindo de outra realidade a serviço daquele que quer solapara toda a existência: o Rei Rubro... 

Após este encontro com o coração da cidade, somos apresentados ao nosso, já crescido, Jack Chambers. Esquecido dos horrores que passou para salvar sua mãe, ele vive de boas em as casa esperando os dias passarem. Assiduamente ele se encontra com Henry Leiden, um radialista cego que consegue “enxergar” mais que muita gente. São eles dois, juntamente com o delegado Dale, uma gangue de motoqueiros, Judy Marshal, uma mulher com ligações com os Terrirórios, e um amigo do passado que terão de acabar com esses horrores...

Como eu disse antes, já sabemos quem é o assassino, sendo assim, os autores confiam na força narrativa para nos manter curiosos a chegar até o fim das mais de 700 páginas. São descrições de lugares bem feitas, de sentimentos pulsantes e, acima de tudo, da psique de cada individuo. É notável como começamos a nutrir sentimentos por personagens: passamos torcer por uns, amar outros, ter penas de uns, raiva..., uma gama ampla de sentimentos que vão nos inserindo dentro da história...

Por falar em história, tenho de vos avisar que, primeiro: é importe já ser familiarizado com a saga Torre Negra. Apesar de os autores explicarem o importante para entender a história, creio que será melhor apreciada por aqueles que já tem uma base, uma noção da busca de Roland Deschain e seu ka-tet pela dita Torre. Há referencias diretas aos sapadores, outros mundos (vá então, há outros mundos além deste) ao icônico Rei Rubro, as Irmãzinhas e Elluria e tantas outras coisas presentes na saga que torna a narrativa mais interessante para quem já á conhece...

Segundo: é imprescindível ler O Talismã. Repito, apesar dos autores se esforçarem para preencher as lacunas do passado infantil de nosso personagem, pra mim seria difícil imaginar certas coisas sem ter conhecimento prévio da passagem pelos Territórios, o carinho dispensado por Speedy e, claro, a amizade encontrada em um homem-lobo (Lobo, oh lobo – aqui e agora)...

Dito isso, temos de salientar que, apesar da imersão que a obra permite, ela é longa demais. Os autores se alongaram em alguns pontos tornando a narrativa entediante em alguns momentos, notavelmente no início. Umas 100 páginas à menos seriam o ideal. Mas, passado esse ponto de letargia, torna-se impossível deixar o livro de lado. Você vai cavando em busca do desfecho da obra e quando dá por si, já venceu mais de uma centena de páginas e o relógio já marca duas, três da manhã e, ainda assim não da pra largar. Quer saber o que acontece com nossos personagens. E o final, que é quase de chorar de tristeza , tem um desfecho que deixa em aberto uma possível continuação – que os autores, há alguns anos atrás anunciaram que viria...

Pautada numa atmosfera sombria, e intrinsecamente ligada a saga Torre Negra, A Casa Negra é um livro que incomoda, emociona, assusta, enoja, cria vínculos e mais um carrossel de emoções. Coisa que só é possível quando o autor(es) consegue mexer com aquele eu sentimental presente em cada um de nós. É bom ver dois mestres juntos...

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A Casa Negra ( Black House, EUA, 2001)
Páginas: 701
Autor:  Stephen King e Peter Straub
Editora: Objetiva
Comprar: AMAZON

[RESENHA] Laranja Mecânica, de Anthony Burgees


Longe o profeta do terror que a Laranja Mecânica anuncia...
(Alucinação – Belchior)
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Laranja Mecânica é daqueles livros pra se ter na estante, mostrar para os druguis, ler e reler de vez em quando. Juntamente com 1984  Admirável Mundo Novo (eu acrescentaria Farenheit 451) formam a trindade distópica da literatura. Ao retratar uma Inglaterra futurística onde a violência das shaikas tomou proporções absurdas, o autor levanta questões sobre a violência urbana das gangues e o papel do Estado em sua propagação; a leviandade de pais permissivos; a eficácia do sistema carcerário; e até que ponto uma pessoa sem escolha é uma pessoa boa. E faz tudo isso regado há muita ultraviolência,  um linguajar próprio, e alguma doses de polêmica. O resultado não poderia ser outra coisa se não algo muito horrorshow.

O livro começa nos apresentado o personagem central, Alex, e seus amigos, adolescentes arruaceiros membros de uma gangue, vivendo a vida de forma caótica. Saem pelas ruas de uma Inglaterra futurística fazendo todo tipo de atrocidades: espancam pessoas, estupram mulheres, brigam com outras gangues, não estão nem aí para a escola e qualquer outra obrigação. Alex vai seguindo nesta vida até que em um desses embates passa do ponto, é preso e escolhido como cobaia num experimento que visa condicionar o ser humano a não cometer mais atos violentos.

A escrita de Anthony Burgees é fantástica. Narrado em primeira pessoa – sobre o ponto de vista de Alex – ele vai nos conduzindo de forma irônica e até um pouco esquisita pra dentro da mente de nosso protagonista. Digo esquisita por que Burgees criou um linguajar próprio para nossos personagens: o nadsat. Um misto de inglês (neste caso, português), russo e a fala cigana que causam uma estranheza num primeiro momento. E o autor queria causar estranhamento mesmo tanto que no final do livro há um glossário com o significado dos termos (posto a revelia do autor),  que vai de cada um usar. Ele intercala essas gírias com uma fala quase coloquial, no caso de Alex, demonstrando que nosso personagem não é alguém que mantém um comportamento violento fruto da ignorância, ao contrário, Alex é alguém inteligente, amante das artes e fascinado pelas músicas Ludwig Van Beethoven. Aqui o autor já começa a levantar a questão de quais os motivos desta violência. No livro, a causa disso parece ser o Zeitgeist...

Laranja Mecânica mostra um futuro distópico que mescla tecnologia com degradação social. E diferentemente dos livros livros citados anteriormente – 1984 e Admirável Mundo Novo – ele se parece muito com o nosso. Não há um governo tirano controlando tudo ou remédios nootrópicos que trazem a felicidade. O autor prefere se focar mais na mente dos personagens e suas forma de agirem do que na representação direta do governo. Esta tática implica em um paralelo direto com a nossa realidade. Até que ponto deixaremos a violência tomar conta de nossas vidas? E como o estado lida com isso? E ainda, ao mostrar os pais de Alex como indulgentes com seu filho deliquente, ele toca na ferida dos pais como responsáveis, em partes, pela situação de Alex...

São perguntas que o autor não responde diretamente mas deixa implícito o que pensa. Quando Alex é preso, ele acaba por se tornar alguém mais cruel do que já era. Há uma crítica forte ao sistema carcerário que não recupera ninguém, só piora. E quando ele sai do cárcere, vê que seus antigos e membros de outras gangues tornaram-se policiais. É o Estado combatendo a violência com mais violência. Mas, este mesmo Estado tem outra ferramenta para combater a violência: condicionamento...

Em algo que lembra os experimentos de Ivan Pavlov, Alex sofre uma espécie de lavagem cerebral e só o fato de pensar em ferir alguém ele passa mal. Algumas pessoas não concordam pois retira o poder de decisão do individuo e o autor levanta um questionamento filosófico: alguém bom, que o é por não ter escolhas, é alguém bom? E, se a resposta for não, importa? E, é justo fazer isso com um individuo? Mas, devemos nos preocupar com algo justo, humano para alguém que faz mal a humanidade? Questionamentos como este são bem atuais num Brasil que estuda aplicar castração química em estupradores e outras forma que, dependendo de quem observa, pode ser vista como punição, castigo merecido, solução dos problemas, desumanização do individuo, tortura e mais um monte de coisas. Qual é o correto? Existe algum que o seja? São perguntas muito apropriadas a serem feitas...   

O autor vai nos levando por esse caminho de questionamentos mostrando uma violência gigantesca. Que, apesar de todas as nuances que cercam a vida de nosso personagem, fica claro que ele é o que é, não só como fruto do seu entorno, mas também porque decidiu ser assim. E falar sobre isso sem mencionar a adaptação homônima feita pelo magistral Stanley Kubrick não dá – é impossível não imaginar o ator Malcolm McDowell quando se pensa no Alex. Pois, este filme, considerado um dos melhores já produzidos, recebeu fortes críticas pela violência. Inclusive, Kubrick, acusado por políticos e autoridades na Inglaterra de instigar a violência nos jovens, decidiu proibir a circulação da obra na terra da rainha. Sem contar que a obra que Kubrick adaptou não continha o último capitulo já que a versão que ele usou, a americana, não apresentava esta parte – decisão da editora, mais uma vez a revelia do autor, que achava que o final destoava do resto da obra. Então, há um final diferente para as duas obras que é fantástico para nós como espectadores...             

Ao final do livro, há uma situação em que determinado grupo tenta se aproveita de Alex com fins políticos. É interessante notar como o autor faz uma retrato nada adocicado da politicagem que, no livro, estão representando os próprios interesses. Foda-se o povo...

Laranja Mecânica é um livro que te faz pensar sobre como nos comportamos como sociedade e até que ponto estamos dispostos a deixar o governo ir para sanar nossos problemas (aqui no Brasil, os problemas que eles mesmos, os políticos criaram) e qual nossa parcela de culpa nisso tudo. Se você gostou do filme, não se faça de rogado e leia esta obra que é deveras horrorshow...

Obs.: eu iria explicar o significado do título, Laranja Mecânica mas achei por bem deixar que você descubra ao ler.

Obs.2: as palavras em itálico no primeiro parágrafo estão no idioma nadsat que são: Druguis (amigos), Shaikas (gangues), Ultraviolência (violência exacerbada) e Horrorshow (maravilhoso, demais, ótimo).


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Laranja Mecânica (A Clokwork Orange, Reino Unido,1962)
Páginas: 224
Autor:  Anthony Burgees
Editora: Aleph
Comprar: AMAZON
  

[CRÍTICA] filme, Blade Runner 2049


Dennis Villeneuve ousa em sua continuação de Blade Runner e nos deixa a seguinte pergunta: afinal, importa se somos humanos?
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Blade Runner não foi um sucesso imediato em sua época de lançamento. Pouca arrecadação e críticas em sua maioria negativas pareciam decretar que este seria mais um daqueles filmes que se esperavam muito mas que não mostrou para o que veio. Porém, no decorrer dos anos, a crítica passou a ver a película com outros olhos e paulatinamente, a obra do diretor Ridley Scott alcançou o patamar de clássico da ficção cientifica com a honra de ser um dos melhores do gênero (para muitos, o melhor).  Quando foi anunciada a continuação muitos ficaram receosos.  Pra que me mexer em algo que se consolidou? Apesar do diretor escalado para o projeto, Dennis Villeneuve, ter mostrado uma competência sólida em sua filmografia, a desconfiança ainda pairava. Porém, após a exibição, o que se viu foi uma obra que segue a cartilha das continuações de sucesso: mantém a essência e atmosfera da obra original mas toma novos rumos expandindo o  universo criando sua própria filosofia...

Blade Runner – 2049, narra a história onde a Tyrell Corporation – responsável pela criação dos androides, ou replicantes. Após problemas com as versões Nexus 8, quase fale, porém é comprada por Niander Walacce (Jared Leto), que expande e aumenta o tamanho da companhia desenvolvendo replicantes mais obedientes aos humanos. O Blade Runner K (Ryan Gosling), acaba descobrindo uma conspiração para manter um segredo, e parte em busca de Rick Deckard (Harrison Ford) que talvez tenha as respostas que ele busca. Não dá pra falar muito muito mais sobre o filme pra não estragar a surpresa de quem ainda não viu. Não que as reviravoltas sejam a essência deste filme, não são! Mas é sempre legal manter um certo desconhecimento do que irá acontecer num filme de investigação...

Dennis Villeneuve é um caso raro de diretor que apresenta uma filmografia relativamente extensa (nove filmes) e não errou a mão em nenhum. Seus filmes apresentam uma atmosfera pesada, um ar de perigo em cada esquina, de urgência (mas sem ser apressado) onde cada frame, cada cena pode ser significativo. Aqui ele mantém isso de uma forma mais robusta, mais opulenta...

Aproveitando os vários ganchos que a história original propiciou, Villeneuve puxa cada um deles mas não querendo ser uma cópia do filme de Scott. Ele subverte o sentido central da obra de 83 sabendo aproveitar todos os acertos do outro filme elevando-os um grau acima. E faz isso sem pressa nenhuma. As cenas são conduzidas pra levar o espectador a imergir na obra. Não apenas vê-la, mas senti-la. Faz isso com uma cinematografia cheia de cores e luzes piscando mas em mundo sujo, asfixiante. A paleta de cores evoca uma ideia noir que se completa com uma trilha sonora forte que sabe a hora certa de elevar o volume. A criação de mundo é toda espetacular. Você consegue sentir que aquele mundo seguiu adiante e mesmo assim, ou por conta disso, ainda apresenta uma beleza que parece nociva, quase erótica. Há um uso muito acurado de projeções visuais no longa e muitas delas, apesar de servirem seu propósito original – propaganda – tem muito a dizer sobre a trama e principalmente os personagens...

Falando em personagens, aqui os atores estão todos excelentes. Ryan Goslyn faz um replicante que se depara com  um mistério gigantesco que diz respeito ao mundo ao qual ele vive mas também é algo pessoal, íntimo que muda muito do que ele sabe. E ele consegue transmitir  toda dúvida e incerteza através do olhar, do jeito cansado; Harrison Ford mantém a classe de sempre. Quando ele aparece eu tive quase que um Uou. Harrison traz um Deckar envelhecido mas não inválido. A solidão – ou não – fizeram ele se cercar de cuidados e  medos e o ator transmite tudo isso  dentro de um estoicismo calculado; a lindíssima Anna de Armas dá um show de atuação. Ela faz..., bem, não vou falar pra não estragar a surpresa, mas tem um papel muito importante pra entender a ESSÊNCIA do filme. Há uma cena envolvendo de sexo com ela, K e outra replicante que me lembrou muito uma cena do filme Ela . Porém aqui, a cena é mais impactante. É quase uma viagem psicodélica que casa certinho com a premissa e atmosfera do filme; Jared Leto na pele de Niander Wallace, apesar da brevidade de suas cenas, faz um CEO extremamente inteligente  e perigoso – meio que apaga seu papel em Esquadrão Suicida – e você sente a ameaça exalando dele...

O roteiro do filme, além de acertar em não apressar as coisas, dá espaço para que todos os personagens apareçam na medida do necessário e quando preciso, como no caso de K, só é dito o necessário pra não diminuir a atmosfera de desconhecido. Mas tudo isso não seria nada se o diretor não tivesse ousado em mudar as perguntas do anterior mas sem cortar de todo o fio que as liga. Se no primeiro a pergunta que ficava era o que nos torna humanos, em Blade Runner 2049(adaptado do livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? , de Philip K Dick) a pergunta é: importa se somos humanos? Ou seja, transmuta de uma pergunta mais intimista e existencial para algo mais social. E esta pergunta vem num momento muito importante da história do homem...

No decorrer da história, o homo sapiens dobrou todas as outras formas de vida de acordo com suas necessidades e o fez/faz com a premissa de que somos a “raça” superior, a mais inteligente, mais apta. Isso é muito bem descrito no ótimo Spiens de Yuval Noah Harari. Entretanto, com o advento das tecnologias da informação e seu processo constante de ir além, já se avizinha no horizonte formas de existência que não estamos de todo preparados. Remédio nootrópicos, a fusão do homem com partes cibernéticas e a tão buscada inteligência artificial. Segundo o mesmo Harari em seu outro best seller, Homo Deus, e outros pesquisadores, esses eventos não demoraram mais que cinco, seis décadas pra acontecer. Como nos relacionaremos com esses seres que, em teoria, serão aquilo que o sapiens é hoje? Sem contar nas diversas barbáries que ocorreram no decorrer da história com base no principio da superioridade das raças: escravidão, genocídios, nazismo, dentro outros demônios do passado e do presente, se baseiam na ideia de superioridade de um grupo ante outro com ênfase na desumanização do individuo... 

Apesar de toda essa grandiosidade, Blade Runner 2049 foi mal de bilheteria. O diretor especula que possa ter sido pela trama que pouco foi divulgada – bem diferente do que ocorre com a maioria dos blockbusters. Alguns argumentam que o ritmo lento e o tamanho do filme atrapalharam. Independente dos motivos, o filme tem tudo para repetir os passos de seu irmão mais velho e se tornar um cult (claro, só o tempo dirá), haja vista que ele consegue manter a mística do primeiro filme sem parecer uma corruptela pra arrecadar dim-dim, acrescentando seus próprios méritos e acertos. É esperar pra ver...
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Blade Runner - 2049 ( EUA, 2017)

Roteiro: Hampton Fancher, Michael Green (baseado em personagens criados por Philip K. Dick)

Direção: Denis Villeneuve

Elenco: Ryan Gosling, Harrison Ford, Dave Bautista, Robin Wright, Mark Arnold, Vilma Szécsi,  Ana de Armas, Wood Harris, David Dastmalchian, Tómas Lemarquis, Edward James Olmos


Duração: 163 min.


[CRÍTICA] filme, Aniquilação


“Não está morto o que eternamente jaz inanimado, em estranhas realidades, até a morte pode morrer  
(O Chamado de Cthulhu – H.P. Lovecraft)

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Antes de mais nada, vale ressaltar que este filme é passível de interpretaçãoes. Eu cheguei a algumas e decidi analisa-lo a luz daquilo que mais me chamou a atenção, Ok?

Alex Garland é um roteirista/diretor que no decorrer de seus filmes apresenta um olhar pessimista com relação ao futuro da humanidade. Extermínio e Sunshine – Alerta Solar, que ele “só” roteirizou, e Ex-Machina, que ele roteiriza e dirige, passam a ideia de alguém que não vê a humanidade como boa e que, no final das contas, apesenta uma espécie de instinto de destruição inato que sempre prevalecerá sobre nossos aspectos positivos. Em Aniquilação, seu mais novo longa, distribuído pela Netflix, ela volta a esta premissa mas de uma forma mais aguda, simbolicamente falando, numa produção que mete medo, te instiga a refletir sobre algumas coisas, é carregada com uma aura de estranheza e levanta algumas questões que talvez só saberemos às respostas em sua possível continuação.


Lena (Natalie Portman) uma bióloga e ex-militar se junta à uma expedição com outras quatro mulheres para desvendar os mistérios de uma região que foi acometida por um evento estranho – místico? Químico? Alienígena? os pesquisadores não sabem – todas as expedições anteriores fracassaram: ninguém voltou, exceto um, o marido de Lena, o sargento Kane (Oscar Isaac). Antes de descobrir do que se trata aquela anomalia no local, nomeada como Área X ou Brilho, pela luz que emite, Lena precisa descobrir uma forma de ajudar o marido que voltou da Área X diferente e corre grande risco de vida.

Bom, podemos começar a falar que Garland não se preocupa em ser muito didático. Há vários momentos onde uma explicação aparente não existe cabendo ao espectador desvendar por si o que aquilo significa. Há sim alguns momentos de diálogos expositivos mas nada que entregue demais, servem só pra mostrar um rumo a ser seguido e o final fica por conta de cada um (falaremos mais sobre depois...). Mas, olhando um pouco além da superfície, percebe-se que o autor deixou  muitas informações de forma indireta e elas tem muito à dizer...

A começar pela formação da equipe de mulheres que vão se aventurar na anomalia. Todas elas apresentam algum problema ou trauma que dialogam  diretamente com a ideia do diretor de autodestruição inata ao ser humano. A física Josie Radek (Tessa Thompson), que se automutila pra se sentir-se viva; a geóloga Cass Sheppard (Tuva Novotny) que enterrou a filha a pouco tempo e sente como se parte dela morrera também; a paramédica  Anya Thorensen (Gina Rodriguez) uma viciada em potencial; a líder da equipe, dr. Ventress (Jennifer Lason Leigh), psicóloga que logo de cara você percebe que há algo de muito estranho com ela e é explicado mais para frente o que é; e Lena que por escolhas do passado colocou seu casamento em risco...

Toda esta carga negativa autodestrutiva das personagens é bem representada logo no inicio do filme de forma simbólica quando Lena está dando uma aula sobre células cancerosas e explica o conceito de tumores, de como eles são uma espécie de autodestruição do próprio organismo. Há um diálogo entre Lena e a dr. Ventress em determinado momento que salienta isso quando a psicóloga diz:

"quase ninguém se suicida, mas todos se autodestroem. Nós bebemos, fumamos, traímos o marido..."  

E é sobre isso que o autor quer falar: nossa capacidade de autodestruição...

E o autor decide fazer isso de forma, digamos, diferente. Ele enfatiza os planos abertos – bem oposto ao eu vimos em Ex-Machina que prioriza as tomadas mais fechadas e intimistas -  colocando os personagens no centro da câmera com um espeço pouco preenchido em volta. Isso serve pra mostrar o local onde se encontra a anomalia dando uma ideia de natureza e ressurreição, de surgimento. A fotografia também vai por este caminho num tom meio esverdeado que remete logo ao natural. Mas este natural não é familiar, pelo contrário...

Dentro do Brilho, vemos formas de vida hibridas, impossíveis de ocorrer segundo a biologia atual – crocodilos com dentes de tubarão, veados com chifres floridos, flores cladisticamente distintas mas que provém da mesma planta..., e isso, além de ser visualmente belo em alguns momentos é aterrador em outros. Um deles principalmente. Há uma cena com as personagens em uma sala, com uma luz fraca, que surge uma dessas criaturas que te faz dar um pulo na cadeira de tão bizarro e medonho que era aquilo. Me lembrou imediatamente o conceito de Vale da Estranheza. Mas, apesar do tom instigante e do suspense permeando toda a obra, os momentos de susto pontuais não são constantes  - o que é bom pois quando surgem, são foda -  e talvez por conta disso, o autor decidiu por aplicar uma atmosfera meio gore em algumas cenas. Cito principalmente quando as expedicionárias encontram um vídeo da última expedição e o bicho se mexendo dentro do cara evoca um senso de bizarro e nojento.

O filme é contado em flashbacks já te contando que a exceção de Lena, todos morreram. E quando sabemos como e entendemos algumas coisas (pois não há resposta pra tudo) principalmente a nova natureza de Kane e Lena, aquela classificação de ficção científica fica meio em segundo plano. Me lembrou muito algumas histórias de Horror Cósmico de H. P. Lovecraft, principalmente os contos A Cor Que Caiu do Céu e O Chamado de Chullu. A trilha sonora com instrumentos que dão a impressão de algo fora desta realidade reforçam esta impressão do desconhecido, de uma força ou forma de vida que nem liga pra nós humanos e por isso, perigosa. Sem contar que a nova natureza dos personagens casa perfeitamente com a ideia de autodestruição que foi evocada no filme. É uma representação bem forte dos humanos que vivem a modificar tudo a sua volta, inclusive a forma de vida da própria espécie – é só lembrar dos cristãos catequizando os índios... – não se importando muito com o que está se perdendo neste processo, principalmente no que diz respeito a fauna e flora...  

A cena final do filme é bem surreal. Um excesso de cores numa sequencia bem psicodélica que me lembrou o final de 2001, Uma Odisséia no Espaço (pessoal, não estou comparando, ok?). E este final apesar de dar uma algumas respostas não explica tudo: o que era aquele Brilho? Porque veio aqui? Será que realmente acabou? O que são agora Lena e Kane? Eu cheguei a uma conclusão (não sobre tudo, vale ressaltar) bem subjetiva e a cena, lá no inicio com Lena e Kane dando as mãos com um copo de água na frente impossibilitando saber qual mão pertence a quem, que me pegou logo de cara ficou mais forte ainda depois da cena final deles dois se abraçando...

Apesar de deixar o final em aberto, afinal é baseado na trilogia do autor Jeff Vandermeer, Aniquilação fornece algumas respostas mas não todas. Pela natureza surreal do filme e seu ritmo as vezes lento, pode não agradar à todos. Ainda assim, é um filme que vai consolidado Alex Garland como um dos novos nomes da ficção cientifica, sempre com a mensagem de que os seres humanos são, em si, autodestrutivos. ...
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Aniquilação (Annihilation, EUA, 2017)
Roteiro: Alex Garland 
Direção: Alex Garland

Elenco: Natalie Portman, Oscar Isaac, Jennifer Jason Leigh, Gina Rodriguez, Tessa Thompson, Tuva Novotny


Duração: 115 min.