[RESENHA] "as últimas testemunhas", de Svetlana Aleksiévitch

"Nós percebemos, sentimos na hora éramos as últimas testemunhas. Naquela linha... naquele limite... somos as últimas testemunhas. Nosso tempo está acabando. Devemos falar... Nossas palavras serão as últimas"  


Svetlana Aleksiévitch tem uma forma única de contar histórias. Já havia lido, de sua autoria, o emocionante e triste “Vozes de Tchernóbil”, que trata sobre a visão dos bielorrussos sobre o desastre na usina de Chernobyl. E ali ficou claro que antes de ser um relato de fatos passados os livros da autora transmitem sentimentos numa fluidez sem igual na literatura. Não à toa, Svetlana já foi laureada com o prêmio Nobel de Literatura...
O livro, “as últimas testemunhas”, que tenta transmitir a visão das crianças soviéticas durante a ocupação alemã até o fim da Segunda Guerra Mundial, não vem com o propósito de ser um documento histórico do conflito. Isso, já encontrarmos aos montes. Aqui, o que importa mesmo para a autora, não são os movimentos de batalha e estratégias de guerra e sim, como fica a vida de uma criança inocente, que de repente se vê no meio de um conflito que não entende mas logo descobre que, seja lá porque ele ocorre, está destruindo tudo aquilo que ela conhece...
E como a autora escolhe contar esta história: da voz aos que passaram por isso. Sem filtro, sem amenizar, sem tornar mais palatável! E, veja bem, cada palavra, cada linha, cada página, é um tiro de AK-47 no íntimo de nossa consciência. É impossível não sentir um mal estar, uma tristeza profunda ao ler esses relatos:

"Os alemães iam pelas khatas. Juntaram os que tinham filhos entre os partisans... E cortaram a cabeça deles com um machado no meio da aldeia... Ordenavam: olhe! Numa khata não encontraram ninguém, capturaram e enforcaram o gato. Ele ficou pendurado na cordilha, feito criança... Quero esquecer tudo..."  

O medo de não ver mais o pai e mãe; a busca dolorosa pra encontrar algo para comer; o desespero ao perceber que seu cãozinho ou gato é sua última chance de saciar a fome; de ver seus irmãozinhos sendo fuzilados... Poderia ficar aqui, linha após linha descrevendo o que esses crianças tiveram de vivenciar em primeira mão. E ainda assim seria impossível trazer a mesma desesperança contido em seus próprios relatos...

E é impressionante como a autora, abrindo mão de sua própria voz, serve de interlocutora desses que foram os que mais sofreram com o conflito. Misturar todos esses retalhos de histórias e montar um relato coeso exige muita habilidade, tato e perspicácia: estamos falando do maior conflito que criamos e como isso implica na vida de crianças...


Foto: Lara Greco @lararilara

Ler “as últimas testemunhas” é um lembrete de que o homem, que é capaz de coisas incrivelmente belas, também serve de depositário para que aquilo de mais vil que possa ser concebido. E ver os relatos através dos últimos seres que presenciaram o pior capítulo da história humana serve de alerta para todos que pensam que guerras e conflitos sejam caminhos para algo de bom. Parafraseando Fiódor Dostoiévski:

"e será que encontraremos absolvição para o mundo, para a nossa felicidade e até para a harmonia eterna se, em nome disso, para solidificar essa base, for derramada uma lagrimazinha de uma criança inocente? Essa lagrimazinha não legitima nenhum progresso, nenhuma revolução. Nenhuma guerra. Ela sempre pesa mais. Uma só lagrimazinha..."  
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as últimas testemunhas ( оследние свидетели, Rússia, 1985)
Páginas: 320
Autor:  Svetlana Aleksiévitch
Editora: TAG - Experiências Literárias, Companhia das Letras
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