Mesmo
com anos de mudanças em nossos hábitos e costumes, existem sentimentos que hão
de perdurar, possivelmente, enquanto a espécie humana existir. Ainda que nem
sempre nossos sentimentos sejam nossos melhores aliados, por vezes, somos
tomados por essa força avassaladora que desafia a lógica. E dentre a gama ampla
de sentimentos, talvez o amor seja o mais forte de todos. Mas, o que seria
passível de amar? Amamos animais, carros, dinheiro, objetos. Porém, nada disso
se compara ao amor que dispensamos a outras pessoas. A vontade de compartilhar
a vida com mais alguém está entre um dos costumes e vontades mais latentes do
ser humano. E se essa vontade de viver junto, esse amor, ao invés de ser por uma
pessoa fosse por uma máquina. Mais especificamente, um programa de computador?
Será que há um limite para aquilo que podemos amar?
É
sobre essa premissa, amor e tecnologia, que o engenhoso diretor Spike Jonze
dirigiu e escreveu o fantástico filme Ela (2014). Ambientado num futuro com
novidades tecnológicas proeminentes, mas que não tem a soberba que muitos
filmes do gênero têm, o longa mostra Theodoro Twombly (Joaquim Phoenix), um
homem que trabalha escrevendo cartas sentimentais para outras pessoas e está
passando por um processo de divórcio que acaba deixando-o abalado. Theodoro é
um homem sensível e sentimental. Apesar de manter uma distância de seus
pares, está longe de ser solitário. No momento, vive as angústias que um divórcio
acarreta. Um dia, adquiri um programa de computador que seria um sistema de
inteligência artificial. De início, o programa apenas o auxilia em suas
organizações, posteriormente, o programa se auto-intitula Samantha (voz de
Scarlett Johansson), e Theodoro acaba por se apaixonar por ela.
O
filme é de uma precisão cirúrgica e de uma beleza avassaladora. Dramático,
engraçado, romântico, triste, lúdico, filosófico, belo; o longa consegue
desfilar por todas essas nuances sem se perder em nenhuma delas sabendo dar
espaço a cada uma explorando um roteiro bem feito e eficiente. A relação entre
Theodoro e Samantha, por mais que pareça estranha num primeiro momento, acaba
tornando-se plausível graças a eficiência do diretor e das interpretações de
seus atores. A história deles, que é linda, sabe tirar do espectro das relações, uma poesia que toca aquele "eu latente" em todos nós, que ânsia por deixar a abstrusidade e emergir numa superfície lúdica e poética. algo belo assim, Há um cuidado em não aproximar o longa dos romances clichês e
quando há uma convergência para filmes simplistas do gênero, o autor trata logo
de cambiar os rumos da narrativa aproveitando da liberdade que a ficção
cientifica possibilita em certas ocasiões.
Os
diálogos são incríveis e conseguem transmitir toda a carga emocional que um
relacionamento traz consigo: felicidade, cumplicidade, companheirismo, dúvidas,
ciúmes, sexo. Por falar em sexo, há uma cena com a personagem Isabella, vivida
pela atriz Portia Boubleday, que mostra toda a dificuldade deste
relacionamento. Chegando ao ponto de ser bizarra, não no sentido de destoar da
narrativa, mas sendo bizarra em si, a cena acaba pontuando como certas
barreiras são difíceis de serem vencidas.
A
cinematografia é excelente. Toda filmada em tons pastéis, ela salienta o
caráter lúdico do amor e do relacionamento de Theodoro e Samantha. Há uma
espécie de magia na atmosfera que evoca um lirismo etéreo. O figurino é engenhoso.
Apesar de passar numa Los Angeles do futuro, as roupas evocam uma época
passada, dos anos 1960, 70 combinando perfeitamente com a fotografia. A trilha
sonora é sútil e eficiente, dando a impressão de ser algo orgânico do filme.
Ainda
assim, o que deixe tudo mais plausível é o elenco. Joaquim Phoenix está
excelente no papel. Ele consegue transmitir toda a alegria, tristeza, amargura
e dúvidas de Theodoro. É impossível não
sentir um pouco do que ele sente, e isso de forma quase osmótica. Poderia
facilmente estar entre os indicados ao Óscar. Scarlett Johansson é outra que destrói.
Apesar de não aparecer fisicamente, seu trabalho de voz insufla nos espectadores toda uma
inquietação. Ora dúvidas sobre suas intenções, ora pena. Em outros momentos, sua
sensualidade transborda. Aqui, ela mostra que mesmo sem seus atributos físicos
que tanto chamam atenção, ela consegue manter um local entre os astros de seu
tempo.
O
resto do elenco, apesar de não ter o mesmo espaço da dupla, estão confortáveis
em seus papéis. Amy Adams, faz o papel de Amy, amiga de Theodoro que passa por
problemas semelhantes ao dele. Está longe de apresentar a intensidade que a
atriz mostrou em A Chegada, porém, ainda assim, mostra que é uma atriz
talentosa. Rooney Mara, que faz a ex-esposa de Theodoro, faz uma interpretação
contida salientando as dificuldades de um relacionamento que aparenta dar
mostras de querer continuar. Olivia Wild e Crhis Pratt também estão no elenco e
estão ok em suas atuações.
Mais
do que ser uma história de amor, o filme é sobre o amor. É difícil passar os 130 min. indiferente ao que se vê na tela. Mesmo com a premissa hipotética de amor à máquina, o filme faz questão de trazer dramas que trazemos conosco e nem sempre temos a sabedoria de driblá-los com eficiência e apesar de uma certa amargura e pessimismo, Jonze sabe dosá-las para que não deixem um gosto de amargura ao final da trama.
Numa época em que mais e
mais, temos a tecnologia como ferramenta de interação social, o filme vem para
nos questionar até que ponta ela é real ou não. Se nossa mente está realmente
preparada para este tipo de inovação. E o diretor tem o cuidado de não se prender
a essas questões de forma distópica. Ele vislumbra um futuro onde esta
possibilidade está presente mas que não é boa ou má intrinsecamente: apenas
existe e são nossas atitudes que mostraram os aspectos de sua qualidade. Assim como quase todas as interações humanas. Mais que isso, ele deixa claro que nossas fraquezas e qualidades, não ficam em um segundo plano ante as tecnologias: elas se acentuam.
Em
um mundo onde as rodas de amigos, cada um conversa com um olho e um dedo no teclado, este filme é mais que um relato de amor. É sobre os sinais dos nossos
tempos.
Ela (Her, EUA, 2013)
Gênero: Romance, ficção cinetífica, drama
Roteiro: Spike Jonze
Direção: Spike Jonze
Duração: 130 min.